Há uma armadilha à frente de cada homem. Parece uma palavra e age como uma palavra e provavelmente é também uma palavra, mas antes de tudo é uma armadilha. O homem enquanto criança ainda não sabe. Depois cresce e aprende... e aprende sobre tudo o que aprende, que tem à sua frente uma armadilha. Aprende por isso, enquanto aprende que tem à sua frente uma armadilha, que antes de dizer seja o que for, antes de dizer que queria dizer outra coisa, que o que sente deve ser tanto quanto possível omitido. Enquanto aprende que poderia sentir outras coisas que não aquelas que sente, aprende também que tem toda a conveniência em não sentir o que sente, mas antes sentir o que se torna evidente que devia sentir quando sente.
Há uma armadilha à frente de cada homem. Homem que é homem aprende que essa armadilha está lá, e aprende como evitar a armadilha que está à sua frente. Quando, adolescente, o homem sente e percebe que o que sente não é o que devia sentir, aprende, por experiência própria, a sentir como deve sentir quem sente. Aprende que o gesto brusco de não acreditar, aquele desvio subtil do braço para obliterar o medo, não serve para ser usado no dia a dia das certezas. E aceita, logo a seguir, que toda a sobrevivência passa por fintar a morte. E escuta com atenção aqueles que sabem como evitar a armadilha de saber outras coisas distintas das coisas que tem o dever de saber.
Há uma armadilha à frente de cada homem. Para saber como deve saber, o homem repete o mesmo exercício centenas de vezes - milhares de vezes se necessário - repete o gesto que aprendeu até que o gesto seja seu, e não deixa que alguma vez de dentro de si transborde outra personagem que não a que Deus criou e limou à imagem e semelhança do seu suposto interesse. A mão adulta segura o instrumento que segura a mão adulta e os dois seguem lado a lado como um só, comovidos por serem tão seguros da sua verdade e tão eleitos sobre a vulgaridade dos que não sabem. Dissipada a disfunção, esquecida a armadilha, segue o homem o seu caminho de articulado dever.
Há, à frente de cada homem, o torpor da liberdade. Assombra com a sua sombra, e seduz com histórias antigas. Ao olhar de quem vê, aparenta-se a perdição, negrume e calamidade. Não vale como a vida. E aprende cada homem, em cada dia que aprende, a não olhar de frente, a não sentir o que sente, a consentir em não sentir para além do que está determinado. Avisado, o homem não cai na armadilha. Escuta com atenção as palavras do oráculo, dos santos e dos deuses, e recorre a rituais para se libertar da liberdade. O homem que cresce e aprende, aprende, antes de mais, a saber as fontes do bom saber e a não hesitar no seu confronto com as armadilhas: nenhuma vale contra a vida recebida como oferta num duvidoso saldo de hipermercado.
Há, à frente de cada homem, o torpor da liberdade. Não vale como a vida porque vale mais do que a vida. É apenas aí, no horizonte disforme onde a consciência é autónoma, que vida se chama vida. Mas que interessa isso se os gestos entretanto aprendidos riscaram da memória a rebeldia, para dar à consciência a prática salutar da submissão.
Prólogo
1 comentário:
não gosto de derrotas. monto-me, pois, na minha vassourinha e vou a voar para longe daqui.
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