segunda-feira, janeiro 22, 2007

Rebanho


Há um corpo estranho dentro de um corpo estranho e espera-se que o corpo estranho seja capaz de expulsar o corpo estranho de dentro de si.
O corpo estranho, qualquer deles, é estranho porque primeiro se estranha e depois se entranha. Ou o contrário.
O corpo estranho que penetra o corpo estranho, entranha no corpo estranho um outro corpo estranho e espera, sem esperar, que o corpo estranho que invade o corpo estranho, se entranhe, que emprenhe o corpo estranho com outro corpo estranho.
O corpo estranho dentro do corpo estranho, gerando outro corpo estranho nas entranhas, é o anho do sacrifício, o salto desconhecido, a molécula da incerteza.
Sendo Deus o corpo estranho que se entranha e estranha, no corpo estranho que se entranha noutro corpo estranho para gerar mais outro corpo estranho, no estranho corpo da terra estranha, fica cada corpo estranho com a ideia entranhada de ser mais do que um corpo estranho na estranha forma da estranha vida.
O corpo estranho é, como o pensamento estranho, uma estranha combinação de pedaços avulsos que se entranham de maneira estranha, como um vício de antanho, e pertencem como a imagem no espelho ao corpo estranho em que se entranhou.
Como todo o pensamento, que a ser pensamento começa por ser estranho no momento em que se entranha, o corpo estranho é o estranho objecto perdido na generosidade do banho que fará do seu potencial de estranheza o que entender. O corpo estranho sobrevive apenas à contingência de a sua estranheza se entranhar na estranha estratégia da multiplicidade.
Quantas ideias estranhas, quantos estranhos sonhos, quantas estranhas verdades, quantas estranhas ilusões, se ficam pela estranheza de corpos estranhos expulsos, recolhidos à partida pela estranheza do esquecimento e ignorados para sempre pela estranha diversidade. É assim que o universo age, distante da fenomenal consciência.
Um corpo estranho vale tanto como outro corpo estranho. Mas há corpos estranhos que valem mais do que outros corpos estranhos. A vida, a ser alguma coisa abstracta, a ser alguma coisa que não radique na estranheza, é apenas a multiplicação aleatória de corpos estranhos, viáveis por infinitésimos de tempo, inúteis fora de contextos muito singulares, imóveis na sua individualidade, e com sofrimento apenas perceptível nas zonas circundantes onde o grito chega.
Um corpo estranho às vezes ama outro corpo estranho e, por momentos, abandona a aridez singular da abstracção.

Prólogo

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