segunda-feira, fevereiro 27, 2006

O computador de Detroit

Assustei-me com o carácter industrial das letras. Vêm de todo o lado. Caem no meu acaso como formas começadas mas afinal já estão completas e justas ao tempo. A minha função seria embrulhá-las em cores vistosas. Ou nem isso. Apenas teria que olhar e aplaudir. Ler seria já um excesso, uma redundância. Então é isso: estou assustado. A terra treme com a intensidade com que as letras caem do ânimo das mentes. Parece agora que a combinatória esgotou as formas belas e já vale tudo desde que o arranjo pareça novo e se distinga do já visto por uma unha negra. E negro não é por acaso. É porque diz tudo sobre a ausência de luz. Mas não é isso, eu sei e sei que me dizem que não é isso. Esgotou-se a combinatória. Um computador com milhares de processadores a trabalharem em paralelo jurou a pés juntos que todas as combinações de caracteres com algum significado já foram feitas: umas por humanos e outras por máquinas programadas para combinar dia e noite todos os padrões que ainda restassem virgens. Agora acabou. O que quer que se faça há-de ser uma repetição. Isto é uma repetição. Até eu já disse isto milhares de vezes, talvez no humilde propósito de me convencer a parar. Cada vez que alguém nasce sente-se no direito - e suponho que tem o direito - de reservar para si um grão razoável de novidade. Não, não sou eu que distribuo esses direitos. Tenho até a minha justificada repugnância a querer dizer seja a quem for o que deve fazer. Assustei-me foi com a dimensão. O carácter monstruoso do que vem chegando e inundando todos os canais, todos o percursos, todos os olhares.
"Olha aqui o que eu tenho, o que eu produzi. Dá atenção a este texto, a esta música, a este quadro, a esta cuspidela para o ar. Olha pra mim, porra! Não consegues perceber que não tenho tempo para falar com pessoas que não me ouvem?"
Um computador em Detroit com milhares de processadores a trabalhar em paralelo combinou em segundos todas as letras de todas as formas possíveis e determinou que a partir desse instante toda a escrita passava a ter direitos de autor. Depois fez o mesmo com todos os sons, com todas as cores, com todas as formas, e toda a música, toda a pintura, toda a arte passou a ter direitos de autor. "Faças o que fizeres já foi feito por um computador em Detroit que registou, num outro computador em Detroit, a autoria de todas as variantes da natureza que ainda não tinham sido feitas até hoje."
Sobre a minha secretária, há uma pilha de revistas que comprei já desactualizadas. Não consigo comprar revistas actualizadas. Quando chego a casa, o tempo do percurso do comboio faz com que ao pousar a revista em cima da secretária ela já não seja actual, já tenha sido ultrapassada em actualidade por milhares de outras revistas que ainda não comprei.
Ligo o computador. Demora. É um aparelho mono-processador. Peça de museu, ele próprio. Ao aceder a um 'site' há uma demora assinalável. O que recebo está desactualizado. Refresco e vem outra página que também já não é actual. Há trinta e sete milhões de pessoas a actualizar aquela página. Cada uma das trinta e sete milhões de pessoas copia a velocidades vertiginosas o conteúdo de outros quarenta e nove milhões de 'sites' que estão cada um deles a ser actualizados por dezenas de milhões de utilizadores ávidos de mostrar o mundo tal e qual ele é.
Chega o meu momento de actualidade. Informação em primeira mão. Sou o primeiro a saber e comunico. Escrevo rapidamente: "Estou a dar um tiro nos cor..." Porra! Esqueci-me do 'enter'.

Artur Torrado

2 comentários:

João Villalobos disse...

Gostei bastante, Artur! Há, entre os nossos blogues, afinidades electivas ;)
Abraço

Maria Carvalhosa disse...

Sinto-me feliz por ter descoberto este blog: gente que sabe escrever;
gente que sabe bem ler...
são posts como este que nos "agarram" e nos fazem querer voltar.
Obrigada, Artur. Até breve.