domingo, fevereiro 12, 2006

Sangue

Há gotas de sangue no caminho que leva ao topo da montanha.
Escassas, são já demais, porque surgem como marcas num caminho antes difícil mas sereno.
Perturbam então quem passa e quer apenas que o seu pensamento se dirija para as palavras que ainda faltam inventar.

Tinha sido dito aos filhos que nos seus passos a perturbação seria cada vez menor e os percalços do insondável seriam reduzidos à medida do tempo.
Não seriam mais necessárias as filas de gente seguindo o critério da cegueira.
Tinha sido dito com alguma fé, como se lavadas as mãos das sujidades vadias o passado perecesse e os sonhos fossem novos.
A ninguém seria pedido o sacrifício de se fortificar de terror.

Confesso que houve momentos em que, por desejo, acreditei.
Sabia que do lado de lá havia múltiplas formas de contaminar a linearidade do pensamento.
E sabia, ainda melhor, que do lado de cá se encavalitavam as ambições em movimento frenético para extrair de cada instante sucos cada vez mais verdes e sem sabor.
E sabendo tudo isso permanecia esperançado.

A ideia de milagre nasce com cada ser.
E mesmo quando o número irrompe como coisa próxima do infinito, erguemos a taça sugerindo ao tempo uma atenção especial à nossa condição de privilégio umbilical.
Sorte de nascer.
Sorte de viver.
Sorte de sentir.

Tinha sido dito aos filhos dos que morreram em inexplicável sofrimento que a história não se repetiria.
Que um erro acontece uma vez no tempo e depois se esquece a maneira de errar.
Tinha sido dito aos filhos que não importavam nada as evidências de o barco ter uma desmedida inclinação para estibordo.
Que a força das águas dispensava coisas abstractas como justiça e igualdade.

Há gotas de sangue no caminho.
Os deuses estão de novo preparando o ventre para lauto banquete.
Há no ar pólenes soprados com violência que perturbam a respiração de quem passa.
Os deuses querem de novo o medo.

Sísifo


1 comentário:

Elipse disse...

Prometeus e Pandoras precisam-se!