sexta-feira, maio 26, 2006

Brancura

Constrói-se uma dor na ausência. O espaço do vazio é lugar onde há uma coisa que não está. Há, então, para o vácuo, uma história. Um antes e um depois. E uma memória.

Vejo, quando vejo, o que está e o que não está. Leio, sobre a superfície opaca, letras de dimensão nula que a cor das superfícies identifica com a diferença.

Não quero enganar ninguém: o meu tema hoje é o nada. Não quero que se pense que há aqui alguma coisa escondida que se não percebe. De facto não quero que se pense.

Por vezes, em textos menos claros, aparecem palavras que parecem ter coisas para dizer e que criam a ilusão de haver alguma coisa por detrás. Dessas vezes o meu propósito, algo infantil, é enganar, fazer ver coisas que não existem nem sequer na minha imaginação. Aparece, nesses casos, um vulto ténue, que se insinua nos pensamentos e faz crer - pura crença, portanto - que é alguma coisa, que respira, que age, que mente e saltita na forma pouco perspicaz da velocidade.

Hoje é diferente. Falo da própria entidade que não existe e que, por isso, está mesmo por detrás da palavra que se omite. Não querendo dizer nada que não seja, digo, desde já, que o que digo não é.

Percebe-se que o meu obscuro mito é a honestidade. Percebo eu, pelo menos, quando, como agora, quero justificar-me de não saber. Não há justiça nenhuma no acaso. O que é o mesmo que dizer que a única entidade justa é a contingência.

Se eu tivesse um pouco mais de génio - e deixo em aberto a sua conexão com a inexistência - ousaria subtrair das palavras, aquelas que de uma maneira ou de outra já estão mortas.

Eu revelo: a minha frase fundadora é: no princípio era o verbo. De cada vez que digo, ou que o verbo se diz em mim, estou a substituir nada por vazio absoluto. Vazio dissoluto.

Gosto do verbo. Gosto de absurdas categorias gramaticais, códigos usados para esconder o que se quer mostrar. Gosto que sobre os lábios ocorram súbitas oclusões que fazem dar ao gesto sinais já antes perdidos.

Não há solução para o problema da ausência. Pede-se a um objecto que permaneça no seu lugar dando-se-lhe com hipótese de vida uma prisão. Espera-se portanto, deseja-se, que o que está continue e não se ausente de ser verdade.

Há objectos rebeldes. Decidem por si o lugar onde não estar. Criam lacunas no empilhamento regular dos horizontes. Fluem sempre a uma certa distância do olhar.

Hoje era dia de não afirmar. Também não era dia de negar. O meio termo ficou perdido no lugar estranho e o avanço foi confirmado por uma carta anónima.

Mais tarde ou mais cedo tudo se sabe. Essa é a esperança repartida em múltiplos de sete pelo olhar opaco da insistência. Não interessa nada que nada tenha interesse. No fim, seja isso o que for, não há-de restar nada também.

Consegue sempre provar-se o impossível. Existe, dizem que existe, um processo fiável de olhar para o passado e reconhecê-lo. E aquilo que não é, tanto pode estar no passado como no futuro. Digo eu que hoje tinha a intenção de me deitar cedo sobre uma metamorfose de que há muito deixei de gostar.

Há quem diga que nada se propaga à velocidade da luz. Poderia ser um mero jogo de palavras. Mas não é um mero jogo de palavras: é um jogo de palavras.


Prólogo

2 comentários:

Elipse disse...

do nada para o nada. fica só o jogo, no mesmo registo dos do passado e dos que estão para vir.

Gostava de ler acção nas palavras.

prologo disse...

Não exijas demasiado a um simples prólogo...