sexta-feira, maio 19, 2006

Saliva

O meu único ódio é o vento.
Talvez seja exagero chamar-lhe ódio.
É uma impossibilidade de entendimento.
Não o escuto, não lhe dou ouvidos, não o atendo.
Não o quero nem compreendo porque me persegue.

No esforço rotineiro de subir a encosta, no complicado sistema de satisfação que construí, rola uma inconsequência em que acabo sempre por descortinar o vento.
Sopra sobre as árvores à procura de distâncias que não compreende e arruma os meus sentidos em lugares de exaustão e de impaciência.

Um dia, há muitos anos, provavelmente há muitos séculos, perdi o sentido do gosto.
Num rasgo de impossibilidade, morreu-me o prazer de saborear.
Não foi num momento mas em vários.
O sabor das coisas passou a ser uma paisagem visível a cada vez maior distância.

Poderia ter ficado cego ou surdo.
Mas as bárbaras ocorrências da sorte viraram-me contra o vento e contra mim.
De cada lado de uma fortuita sombra surgiram então memórias de sabores que já não sabia.

Não é justo que culpe o vento, eu sei.
E sei também que nunca serei justo para além de uma pequena proximidade do ódio.

Soube em tempos que o ódio nascia do medo.
Depois esqueci e preferi que o medo nascia do ódio.
Depois, muito depois, procurei razões e justiça e braços abertos que se fechavam sem razão nem justiça.

Só odeio o vento.
Embora seja menos do que ódio isto que sinto pelo vento.

Inevitavelmente procuro uma gradação nas palavras.
Comparo-as, reduzo-as a significados menores ou a espaços vazios que possam entusiasmar-me.
Odeio o vento mas amo a palavra vento que soa bem aos meus ouvidos e parece querer cantar.
Respiro a palavra vento.

Seria bom que as palavras existissem sem aquilo que dizem.

Sísifo

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