domingo, outubro 01, 2006

A dificuldade de ler (60- C5/P3)

- És louco, completamente louco.
- Quero falar-te do texto que estou a escrever. Gosto de falar sobre ele. Sobre a intimidade e a especialização. Sobre a especialização na intimidade.
- Não quero saber.
- Tens-me ajudado. É justo que saibas como as ideias avançam. És a minha musa. A minha razão de ser.
- Então liberta-me. Deixa-me sair daqui.
- Não é essa a questão. Aqui estás bem. Sei que é o melhor para ti. Só ganhas em estar à minha guarda. Não sei se sabes mas o mundo está perigoso. Durante algum tempo criou-se a ilusão de que era possível converter as mulheres em seres livres. Mas isso foi um erro. Um erro grave e caro.
- Deixa-me em paz. Não te quero ouvir.
- Essa rebeldia fica-te bem. É motivadora. A princípio receei que te acomodasses, que ficasses do meu lado, que cooperasses sem resistência. Tinha a ideia que se isso acontecesse a minha atenção redobraria.
- És uma besta imunda.
- "Mais servira, não fora para tão longo amor tão curta a vida." Deve haver no cérebro uma zona qualquer onde se define a paisagem interior de cada um. Num determinado dia da nossa infância ocorre um disparo que vincula definitivamente a nossa essência a um trajecto repetitivo que transporta um prazer primordial.
- O teu prazer primordial é manteres-me aqui presa.
- Não. Não. De maneira nenhuma. Eu não sei qual é o meu prazer primordial. Nem interessa. Até pode ser contraproducente conhecê-lo. Admitindo que isso pode acontecer. As teorias nascem assim, Diana. Lapsos de luz. Depois podemos passar milhares de anos a dar consistência a esse instante.
- Consegues perceber que eu não tenho nada a ver com as tuas teorias?!
- Ah! Enganas-te! O processo é complexo. Muito complexo. Tinha que te ter aqui para ousar. É preciso um clima especial; condições psicológicas, percebes. Tu és o meu factor de transgressão. Sem estas condições especiais não me seria possível avançar.
- Não tens o direito de me ter aqui presa!
- Vá lá! Não recomeces com esse discurso. Toda a ciência obriga a sacrifícios. Toda!
- Sacrificas-me a mim!
- O conceito de sacrifício é muito complexo também. Já me estou a repetir. E não gosto de me repetir a não ser no meu hipotético prazer primordial. Mas eu posso esclarecer essa questão do sacrifício. Como sabes. Basta que eu me dedique. Basta que eu me dedique. Que eu me encontre a sós com a dificuldade...
- Isso. Encontro a sós. Tira-me daqui. Deixa-me ir. Deeeixaaaa-me iiir!
(continua)

Torcato Matos

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