Se não tivesse dentro de mim uma cidade;
Se ao redor do rosto se não construíssem castelos;
Se nas nuvens altas não houvesse o vislumbre opaco da beleza;
Se por contar o verde da montanha não houvesse emoção;
Se na tarde outonal os homens não marchassem inclinados;
Se no perdão das sementes não estivesse pendente a vida;
Se, ao largo do horizonte, o chapinhar ousado das aves se esquecesse da óptica ilusão;
Se no lato senso do saber se não contassem semelhanças;
Se na pausa alegre do café se não bebessem muralhas;
Se durante o amor não se fizessem promessas;
Se oculta nas árvores não estivesse a sabedoria;
Se em cima da mesa não se sentisse o frio da lâmina;
Se no olhar ausente não estivesse também o devaneio;
Se por detrás da escada se não subisse ao contrário;
Se o universo não estivesse todo amortalhado no vácuo;
Se as forças da natureza não fossem as mágoas da prisão;
Se o imenso céu não fosse perdido todo em tempo;
Se à sombra da nogueira não se contassem histórias;
Se pela brisa da tarde não ecoassem os vestígios do medo;
Se o canto das aves não se perdesse na dureza da infância;
Se pendurados na certeza não estivessem o ódio e a ambição;
Se sentado à beira do rio não se ouvissem as sirenes;
Se no corte seco da carne não se ouvissem os ais adormecidos;
Se o beijo dado na boca do desejo não fosse um filme;
Se a pátria onde me acolho tivesse um tecto alto e confortável;
Se à beira do precipício não sentisse a atracção do vazio;
Se na prosa árida de quem escreve não se escondesse o desejo;
Se ao pintá-la de fresco a realidade mudasse;
Se na dádiva do tempo o pêndulo rodopiasse uma vez;
Se ao acaso dos sonhos se juntasse alguma vez a satisfação;
Se os olhos pudessem ver algo mais que sombras;
Se o medo servisse apenas para assegurar a sobrevivência
Então, hoje, talvez não quisesse dentro de mim uma cidade.
Artur Torrado
1 comentário:
Não falarei de Kipling, mas da certeza que me encantou ao ler estas dúvidas, que afinal eram mais perguntas de quem sabe todas as respostas.
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