Há flores, claro que há flores. Regam-nas todos os dias com a mesma persistência com que colocam um passo à frente do outro, na vã esperança de chegarem a andar ou, melhor dizendo, de chegarem a mover-se do interstício voraz onde caíram. Iluminam as fortalezas para que de longe pareçam monumentos e nem ocorra a quem passa, perto ou longe, o instrumento de tortura que foram. Ou por isso mesmo. Um dia se dirá que um monumento é ou foi em alguma idade um instrumento de tortura. Parece que não gostamos da tortura apenas quando está a ocorrer desperta e inteligível à frente dos nosso olhos quase abertos. Há espanto e há terror e há nojo. Os arquitectos que arquitectaram o monumento e que são os heróis que transcendem os heróis que utilizaram o monumento para se torturarem ou torturarem outros, num apego amador de profissionais do sofrimento, têm a honra de se anunciar como substitutos de Deus na terra. Dizem eles que desenharam antes de ser possível pensar aquilo que tinham pensado. Mas deram à beleza uma função. Neste lugar hão-de ficar retidos corpos que serão incapazes de ser livres. E terão tido um sorriso de vitória, os arquitectos, ao pensarem: daqui ninguém sai vivo. Tinham planos os arquitectos para se agradarem da beleza que podiam dar às pedras e ao mesmo tempo tinham planos de agradar a Deus - Aquele em vez de quem eles estavam - e ao mesmo tempo agradar a quem mandava, mais que Deus, menos que Deus, quase tanto como Deus, ou que, às vezes, se fazia passar por Deus. Não tiveram dó, os arquitectos, de fechar os caminhos a quem queria passar para ser - já não digo livre - decentemente visitado pela morte. A parede mais grossa, a que cercava a toda a volta o lugar dos imóveis, era inicialmente para reter seguros os que eram livres. Lá fora, contra as muralhas, estavam livres os que se queriam apoderar do monumento. Não há lugar melhor para sentir o frio de uma lâmina que o interior enegrecido de uma sala monumental. Nas paredes podem ser feitos os sinais mais enigmáticos que isso não tirará à dor o seu sentido inútil. Mas mesmo assim é bom que o desenho seja harmonioso para que se conjuguem as formas e todos os sentidos cantem na mesma nota de dó. Com o tempo cresce o afecto pelas pedras sobrepostas. Tinham sido desenterradas de lugares fundos e difíceis. Tinham as pedras, que entretanto aprisionaram, estado presas na profundidade onde um fogo primordial as tinhas esculpido. Pormenores do passado que se perderam por efeito sequencial das gerações de calamidades. Por isso, hoje apenas percebemos a beleza de um gesto que terá sido transformado em pedra metafórica: tempo que se gastou de uma mão que bateu num ritmo certo sobre o núcleo duro da insensibilidade até obter uma forma escondida que desse ao tempo um significado. A fortaleza quer, antes de tudo, interromper a indiferença da paisagem. Aqui estivemos nós e os nossos escravos a marcar no mapa do futuro uma mancha de morte. Mas a morte morreu entretanto. E sobrou o alicerce doloroso que marca a fragilidade de ser. Parece, e digo parece por defeito de voz, que não se consegue encontrar em nenhum destes volumosos embustes mais do que a força geradora do divino acaso. As células vitais organizaram-se para se torcer umas às outras com profissionalismo e arte. Cada vez que a história é contada tem que se começar do zero. Recomeçar, portanto. Não fica na estrutura orgânica nenhum sinal que a contingência não permita. Repetem-se as cenas e é necessário ir aos livros buscar a memória para preencher o vazio bronco de cada guerreiro imberbe. De tudo o que é belo acabam por ser apagados os sinais, assim que o corpo se aquece de medo e violência. Mas há sempre esperança de que, depois de abrigar por muitos anos a dor, a laje fria que define o perfil poderoso, regresse um dia à sua textura de espuma interestelar.
Artur Torrado
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