sábado, outubro 07, 2006

A dificuldade de ler (63- C5/P6)

- Vou à tua rua e pergunto por ti. Dizem que tens escrito a dizer que estás bem. Eles mentem a teu favor. Querem esconder-te de mim, mesmo não sabendo onde tu estás. E eu sei que não lhes tens escrito. Embora gostasse que lhes escrevesses a dizer que estás bem, que nunca estiveste melhor. Que te encontras junto ao teu amado e te sentes feliz como nunca antes tinhas pensado ser possível. Era assim que eu gostava que escrevesses para lhes dizeres que estavas o pé de mim. Sei que não é possível agora nem será possível nunca. Mas isso não me impede de o desejar e de o imaginar. Mesmo que não me interesse o que pensam de mim. Pois eu sei que pensam que te foste embora para fugires de mim e da paixão que me trouxeste.
- A tua imaginação é fértil como a tua voz é irritante.
- Não pensaste sempre assim.
- Nem tu me prendeste nunca desta maneira.
- Mas é isso que eu quero: ter-te presa a mim. Para sempre. Ultrapassar os gestos banais e materializar a posse. És minha. És desta casa. Este é o lar que aquele que te ama construiu para ti. Noutras eras terias, pela tua beleza, sido solicitada para as antecâmaras dos deuses. E nem te ocorreria rejeitá-los. Era o destino da tradição. Não se chamava tradição mas vida. Aqui és o que eu disser que és. Não que isso me dê prazer. Também eu cumpro a minha missão.
- As tuas desculpas sempre foram esfarrapadas. Caíste no teu próprio formalismo. Lamento ter sido eu a fazer-te perder a insegurança. Ao acreditares em ti tornaste-te num monstro. A fé é mesmo a mãe de todas as aberrações.
- Concordo que foste tu que me libertaste. Todos os humanos são produto das mulheres que os fazem. São vocês que recriam o passado no presente através dos meios próprios de renovação. E depois amparam os passos essenciais para que a estrutura se segure de pé por si. E esperam que o que criaram se torne forte e poderoso e possa medir-se com sucesso contra os filhos das outras mães. São vocês a génese da violência e da dor. Ainda que teimem em representar a vítima passiva.
- Nunca soubeste tu o que é ser vítima. Apenas corres por pensares que o caminho foi feito propositadamente para o pisares. Nunca olhas para o que tens como uma dádiva mas como um direito. E aceito que foi meu erro fazer-te acreditar que valias alguma coisa.
- Tentas desmoralizar-me Diana. Mas se é assim, fizeste um trabalho bem feito. Agora sou aquele que sabe que é capaz. Já esqueci como era isso de haver estranhos impedimentos nos meus trajectos prioritários. Agora sei que saber é saber bem aquilo que me sabe bem.
(continua)

Torcato Matos

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