sexta-feira, outubro 06, 2006

A dificuldade de ler (62 - C5/P5)

- O que acontece todos os dias são surpresas. Milagres. Podes chamar-lhes milagres. Sonhos também. Rotinas de embriaguez.
- Porque me prendes?
- Não te prendo. Estás aqui pelo teu querer. Vieste pelo teu pé. Limitei-me a fechar o cadeado que tu colocaste em ti própria.
- Era uma brincadeira. Um gesto de submissão. Uma travessura, uma transgressão, uma tentativa de perversidade.
- Tocaste o meu prazer primordial. Não sei se se pode dizer assim. Claro que pode. Ah! Ah! Ah! Não estou adaptado ao poder. Ainda pergunto o que se pode dizer ou não. Deve haver um limite para a percepção que posso ter de mim próprio. Mas aqui existo apenas porque aqui estás.
- Estou cansada.
- É como imaginar que universo seria o universo sem ter quem olhasse para ele. Existiria na mesma? Não achas fabuloso que o universo tenha engendrado em si consciências capazes de o querer interpretar? Para quê isto tudo? Até para o homem olhar é demais.
- Agora parece-me que o universo apareceu apenas para tu olhares para ele.
- Mesmo que não estivesses a ser irónica não me seduzirias. Sei de quase todos os meus limites. Sei que, por exemplo, és a minha felicidade mas vais ser também a minha desgraça. Dois em um. Hoje sabemos da dualidade onda-corpúsculo. Nada é apenas uma coisa.
- Eu aqui sou nada. Em vez de dualidade sou nulidade.
- Complicas aquilo que é simples. Se me amasses e eu tivesse êxito o meu êxito seria também teu. Eu em glória serias tu em glória por interposta pessoa.
- Por trás de um grande homem uma grande mulher. Começo a conhecer-te agora. Ou talvez esteja a aperceber-me da tua dualidade. Ou da tua trialidade. Ou da tua teatralidade. Ou da tua trivialidade. É fácil rimar em idade.
- Há muitos exemplos na história. É uma prática milenar. Foi assim que o universo evoluiu e não devemos alterar a ordem natural das coisas. Não devemos mexer nos mecanismos internos da natureza, nem perturbar a inércia dos formalismos da matéria.
- Tens medo de quê?
- Não é uma questão de medo. É a sujeição à terra. Somos produto do acaso e de uma ocasião que não se repetirá.
- Que perdes por não obedecer? Que temes perder?
- Eu não temo nada a não ser a ti. Tu é que tens na mão o argumento da minha derrota. Só tu é que me podes fazer frente. Por isso é importante que fiques imobilizada num lugar que passa a ser o teu e a que te conformarás com o tempo.
(continua)

Torcato Matos

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