quarta-feira, outubro 25, 2006

A dificuldade de ler (67- C6/P1)

Capítulo VI (mono)

Sabes? Eu não sou do meio. Não respondo pelos mesmos nomes, não dou os bons dias aos da terra sem que eles o façam primeiro porque nem sequer sei se são da terra ou se são de fora. E eles dão muita importância a ser da terra. E quando me dizem bom dia é porque são da terra mas sabem perfeitamente que eu não sou de cá e por isso os bons-dias que me dão não são iguais aos bons-dias que trocam entre eles. As diferenças na entoação, no calor da voz, na firmeza que substitui o canto habitual. Eu sei que é assim porque os ouço trocar os bons-dias quando ainda estou em casa a fazer a barba e eles passam uns pelos outros do lado de fora da minha janela. Falam alto para que todos saibam que se cumprimentam uns aos outros com benignidade e se aceitam e frequentam as mesmas ambições há muito tempo.
Eu não sou do meio. Vim aqui parar por acaso, por força de determinações que me ultrapassam, o que para todos os efeitos tem o mesma importância que o acaso, o puro acaso. Também isso ajuda a que eu não seja do meio. Poderia ter acontecido ter aqui vindo parar por razões de vontade. Poderia ter um desejo há muito escondido no meu interior de vir para este lugar. Mas não foi o caso. Eu apenas tinha uma ideia muito ténue acerca desta existência e nem me passou pela cabeça tentar saber antecipadamente os lugares onde poderia ir parar, para antecipadamente me ir informando e até, quem sabe, começar a desejar estar em algum dos lugares possíveis. Por isso este lugar era como outro qualquer dos que eu não conhecia nem tinha, reconheço, nenhuma vontade especial de conhecer.
Isto aqui não me diz nada, sabes? Claro que cheguei a desejar estar num lugar vago. Mas nunca me parece que tenha sido este. A imagem que eu tinha na cabeça sobre o lugar para onde deveria ser mandado era muito incipiente, talvez um estereótipo daqueles que resultam de algum filme visto na infância ou de uma imagem que se tenha imposto num momento qualquer. Ou uma colagem. Isso, uma colagem de memórias, uma manta de retalhos a fazer de meu lugar futuro. Mas nenhum dos recortes dizia respeito a este lugar. Acho que não me passou pela cabeça que as pessoas dessem os bons-dias umas às outras todas as vezes que se cruzassem. Não isso não acontecia no meu lugar imaginado.
Também não tenho a certeza de no lugar que imaginei haver pessoas. Não que não houvesse lá pessoas, claro que havia, não faria sentido que um lugar fosse lugar se não tivesse pelo menos as pessoas necessárias para o chamarem pelo nome e lhe darem dignidade dizendo a quem as quisesse ouvir que pertenciam àquele lugar. Portanto, o lugar que eu imaginava tinha pessoas, mas não apareciam na minha imaginação. Não estavam à vista. Acho que é fácil de perceber quando as pessoas, ainda que imaginariamente, não querem aparecer. Pessoas tímidas que não se mostram. Ficam a espreitar pelas frinchas das janelas e pelo intervalo dos cortinados, mas não as vemos.
(continua)

Torcato Matos

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