terça-feira, outubro 31, 2006

A dificuldade de ler (70- C6/P4)

Nem sempre estamos preparados para a violência. Sabes bem que eu nunca estou preparado para a violência. E naquele sentido que tu costumas usar - e que eu manifestamente herdei - de dar às palavras a oportunidade de se revelarem, estou a ver-te a chamar a violência por um nome belo de uma mitologia qualquer, que os gregos ou outros trastes velhos que te viessem à memória, tinham adoptado para dar vitalidade a uma acção de contraste máximo. Pois eu vejo a violência como qualquer acto inesperado, qualquer coisa para que não estamos preparados, tudo o que destrói um cenário arduamente construído. Esta comunidade violentou-me ao primeiro contacto através de um cumprimento desajustado da minha necessidade. Matou no instante inicial a minha boa vontade. Liquidou com um golpe seco toda a minha ilusão.
Só te digo isto assim porque o teu olhar cáustico está ausente. Se estivesse aí ficaria silencioso como sempre, à espera ainda assim, com um peso de ansiedade permanente, de um comentário exagerado sobre as coisas mais normais e comuns do mundo. Esta distância é boa por isso. Sei que estás aí, e posso discorrer sobre as minhas dificuldades sem ter que ouvir o eco dramático que as coisas simples, os sentimentos claros, parecem ganhar quando frequentam o teu entendimento castrador.
O meu primeiro impulso, hoje de manhã, depois de ouvir a miserável saudação, foi entrar outra vez em casa, fechar-me e morrer aqui de fome e de sede na esperança de que ninguém desse pela minha falta ou sentisse o meu cheiro. E sabes porque não o fiz? Por vergonha. Exactamente, por vergonha. Tive mais medo de fugir do que de enfrentar. Eu sei que é a tua velha treta: substituímos um medo por outro; o corajoso é aquele que tem um medo oculto mais forte do que o medo visível. Eu tive medo que sentissem que eu tinha medo e por isso atravessei a rua, com as lágrimas a quererem rebentar e segui em frente como se soubesse para onde queria ir, dando a impressão de que tinha um destino e para ele teria que avançar de imediato com resolução e vontade.
Várias pessoas me saudaram. Homens e mulheres: em todos o mesmo injusto bom-dia a que fui respondendo com a voz a sumir-se. A seguir, perdi-me. O meu olhar estava de tal maneira posto em mim que não percebi os caminhos que tomei e os passos automáticos levaram-me para onde as escassas casas já eram nenhumas. Alguns passos ainda dei na hesitação de alguém perceber que me encontrava perdido - estranho paradoxo este que cai assim de me encontrar perdido - e só depois, seguro de que ninguém me via, inverti a marcha na esperança de que a minha intuição me devolvesse ao meu novo lar, à minha nova pátria.
(continua)

Torcato Matos

1 comentário:

Rosario Andrade disse...

Bom dia!
Muito bom! excelente leitura.
Bjico