quinta-feira, junho 29, 2006

A dificuldade de ler (4- P/P4)

Foi nessa altura ou um pouco mais tarde, não sei agora precisar, que ele saiu do carro e entrou em casa pela janela das traseiras como um ladrão que não tem nada a temer por saber a casa vazia. Nunca o prenderiam por roubar ar de respirar, por ser um ar como os outros e, bom ou mau, ser património mundial e não propriedade particular de um inocente qualquer.

Fechou a janela com cuidado para não ferir os cortinados que esvoaçavam com uma felicidade assustadora. Isto sou eu a dizer. Porque ele não pensava, nem pensa, em coisas tão banais como a felicidade. O efeito de cada segundo sobre o empilhar de energia nas células é, em si, causa mais do que suficiente para viver.

Havia no compartimento um cheiro a sono que contaminava todas as emoções e propunha ao instante que cedesse o seu tempo à ausência. Acendeu a luz para localizar a cama que todos os dias se mudava.

Depois apagou a luz para dormir. Dizem que os gatos vêem de noite e ele não sendo um gato via de noite os gatos pardos e dormia de dia para não saber o que se passava nem se preocupar com isso.

Ela - ainda não tinha dito que havia uma ela - a que cuidava dele, que era amante e cartomante e quiromante e às vezes adivinhava o futuro, tendo nisso uma percentagem razoável de sucesso, aproximou-se do repousado e sentiu-lhe a febre com a mão na testa de ferro.
(continua)

Torcato Matos

1 comentário:

Elipse disse...

Agora revestiu-se de sério, com genica literária... aguardo, pois...