Voltei a casa. A Chris não está. Há muitos vestígios da sua presença mas não sei dizer há quanto tempo saiu. Não deixou nenhum recado.
Estou inquieto. Não sei que pensar desta ausência da Chris. Tinha-me preparado para chegar a casa e encontrá-la no sofá predilecto em frente à televisão, respirando pesadamente ao ritmo do zapping, e comentando as imagens com a voz arrastada e rouca de fumo. Há um efeito de estranheza quando uma ausência desejada se concretiza. Não sei da Chris, sei que não está, mas sinto-lhe uma presença próxima, como uma doença de que um medicamento apagou os sintomas por algum tempo.
No estendal da varanda há uma bandeira. Apercebi-me quando as costuras das pontas soltas bateram contra o vidro da janela. Pensei no patriotismo da Chris. No seu apego às pernas musculadas e aos abdominais dos rapazes que fazem da bola a sua profissão.
Não mudou muita coisa na minha ausência. Os lugares vazios continuam a ser os mesmos. Agora volto para o lugar vazio que é o meu e deixo de ser o sem-abrigo que realmente nunca fui. Perdi peso e ganhei olheiras com este tempo que errei pelas margens da cidade fugindo ao mesmo tempo da Chris e de mim próprio.
Agora que repousei e tenho a mente mais lúcida, ocorre-me o nome Fhelícia. Há dias, na rua ainda, tinha-me lembrado dela. Das suas formas, da sua habitual roupa espampanante, do seu aroma a violeta, da voz profunda e rouca, do rosto belo e estático em que a expressão permanecia inalterável, da solidez do andar, do cabelo longo e negro, do peito acolhedor e firme, da surpreendente força do seu abraço. Não me lembrei do nome. Terá sido por não me lembrar do nome que voltei para casa. Fiquei perturbado por não saber como chamar a um todo que me enchia a mente e que, por instantes, se tinha tornado tão real que parecia estar em condições de lhe tocar. Voltei a casa, penso agora, com a intenção de me lembrar de um nome cuja ausência me assustou.
Lembro-me agora do nome Fhelícia. Exactamente com a mesma nitidez com que lembrei as suas formas.
Fhelícia foi uma mulher de que fugi. Não da maneira que fujo de Chris pela infelicidade que me provoca. Fugi de Fhelícia quando descobri que nunca seria capaz de amá-la. Deixei-a, aumentando sistematicamente a distância que me separa dela e não olhando para trás a não ser para ter a certeza que havia tempo a passar. Fugi de Fhelícia numa época de fugas. Aproveitei para fugir de muitas coisas ao mesmo tempo incluindo este rosto que me tentava com paraísos impossíveis.
Não sou capaz de recordar com pormenor os primeiros tempos. A aproximação foi fácil como é fácil conciliar ingenuidades, mas nunca foi total. Havia sempre um mas, um excesso de promessas que faziam hesitar um pobre desconfiado. Durou alguns anos o idílio, demasiados, enfim, para o que hoje me parece uma decisão inevitável.
Fhelícia seguiu o seu caminho - muito maior que o meu - hoje é uma estrela, brilha e alimenta milhares de fantasias, multiplica-se na sua versatilidade de mulher que tudo consegue. Constrói o seu império e reconheço-lhe agora uma frieza que então me iludiu. Cheguei a temer que me faltasse alguma coisa que me tornava incapaz de me deixar encantar por ela.
Hoje sei que na rua, longe do abrigo, distante do equilíbrio de um nome, corre-se o risco de Fhelícia aparecer nos sonhos.
Ivo Cação
1 comentário:
gosto destas tuas evocações escritas num registo feito de delícia. embora já sem Fhelícia...
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