quinta-feira, junho 22, 2006

A Samantha

Sabe-me bem esta ausência da Chris. Persiste um incómodo subterrâneo que tanto pode ter origem na preocupação com o seu paradeiro, como na angústia de a todo o momento ela regressar, como ainda na sensação de culpa pelo bem que a ausência me sabe. Os amigos dizem que ela não regressará antes do fim das férias, dando a entender benevolamente que ainda terei um enorme verão de paz. Não confio nos amigos quando têm o oblíquo propósito de me reconfortarem. Nestas coisas, como em outras, confio mais na minha intuição, apesar de apresentar um saldo profundamente negativo.

Sendo eu um céptico militante, concedi sempre à intuição um lugar marginal, e dei-lhe apenas as oportunidades em que não dispunha de métodos mais deterministas para me decidir. Hoje, uso a intuição numa forma desesperada: torna-se cada vez mais improvável que a intuição falhe outra vez!

Não foi a intuição que me levou a Samantha. Foi o desejo, foi a vontade, foi a força, o impulso interior, base da sobrevivência.

Não recordo a primeira vez que desejei Samantha. Nem serei capaz de recordar todas as vezes que a quis. Com algum esforço conseguiria lembrar todas as vez que foi minha, porque foram poucas... Mas é um esforço inglório. Samantha vive no seu próprio mundo, indiferente a mim e aos outros inúmeros que a desejam. Olha para cada um de nós com desdém, imune aos afectos, centrada apenas naquilo que considera valer a pena. Joga com o seu poder de sedução e sabe tornar-se a mais bela de todas, desviando aqueles que a querem dos seus caminhos seguros e banais. Pega no mais humilde de nós e, querendo ela, eleva-nos à figuração suprema da glória.

Corro o risco de que pensem que Samantha é uma mulher fácil - como é costume dizer-se das mulheres que não se fixam eternamente na exemplaridade de um macho. Seria lamentável porque Samantha é a mais difícil das mulheres. Dá-se, é certo, a quem ela quer. Mas estabelece para isso padrões de muita exigência e distribui os seus favores com o critério de uma deusa. É ela quem escolhe e decide. Invertem-se então as relações causa-efeito dizendo que o melhor é aquele que ela escolheu. Samantha define então o que é bem e mal e torna-se ainda mais desejada.

Amo Samantha desde que a vi pela primeira vez. Devo mesmo tê-la amado ainda antes, apenas pelas descrições que ouvi. Falava-se de Samantha - tal como se fala hoje - como o ser perfeito para fazer de um homem um deus e levar ao céu a cabeça coroada de um humilde. Amo Samantha ainda. Não com o impulso desregrado da juventude, nem com a pressa da inquietação, mas com a serenidade reflectida de dar sentido a cada dia.

Não é vergonha dizer que não fui, nem de perto nem de longe, o favorito de Samantha. Apesar do que cada um sente ser muito seu e exclusivo, e a mim ter Samantha dado bastas vezes o privilégio, sei ver de muitos outros a quem Samantha mais vezes e mais alto levou ao paraíso.

Continuo a amar Samantha. Persigo-a no dia a dia, já sem a imprudência de outrora e intuindo que só muito esporadicamente terei os seus favores. Mas também é verdade que antes parecia que só nela era possível sentir o mundo e hoje, aprendidos os truques que a natureza tem para nos moldar, sei que há mais e melhores lugares para viver.

Ivo Cação

(post anterior de Ivo Cação)

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