terça-feira, outubro 10, 2006

A dificuldade de ler (66- C5/P9)

- Agora ele dorme e eu posso pensar em voz alta que já não o quero, nem quero que ele me queira. Passou o tempo e o que parecia a fluidez plácida de um ribeiro tornou-se em tempestade ameaçadora. Queria recomeçar outra vez. Perder esta vontade de pertença e equilibrar-me sobre as ilusões que ainda tivessem sentido.
- Não sei se posso não pertencer a coisa alguma. Não sei se sou capaz. Há as noites em que a escuridão vem e traz com ela mensagens de significado difícil. Deve ser aí, nessa hesitação de sentido que o desejo de pertencer se materializa. Deve ser aí que se fica inocente e, sem culpa, o gesto deixa de ter razão e parte em busca de movimentos mágicos que justifiquem a continuação.
- Queria estar noutro lugar mas não sei qual. Os passos que dou são destemidos à luz e recolhidos quando as nuvens aparecem a negar o avanço da minha mão. Ele não percebe o que eu quero. Tal como eu. Mas era esperado que por ser diferente me dissesse o caminho, que soubesse outro termo para chamar ao sagrado, que soubesse não ter o mesmo medo que eu.
- Quando vim de boa vontade, quando cheguei para trazer o riso que ainda sobrava nos meus lábios, quando assomei à entrada do rectângulo onde se iria travar a batalha, estava tão certa de saber que era assim como agora estou em querer que me enganei de uma maneira ingénua e infantil. Por que é assim o soletrar do tempo? Por que temos que repetir a morte todas as vezes que sonhamos? Por que causa os sentidos não ficam apenas atentos à força iluminante do rosto?
- Agora sou perguntas. Os passos que dei em volta do pequeno espaço que me resta não me levaram para fora de nenhum lugar. Fiquei apenas com a difusa luz do dia presa no olhar e, mesmo assim, instalada a dúvida de saber se senti ou sonhei.
- Tudo isto é muito vago. Amanhã deverei acordar a querer outra vez sentir. Tenho que acreditar nisso. Tenho que acreditar que os momentos que me impus não tinham nada de irrelevante e os mistérios que ele procura são tão naturais como a minha sede de viver.
- Mas eu perdi. Sinto que perdi. Talvez não tenha perdido agora mas há muito tempo quando o meu corpo se formou no lugar errado, quando viajei para longe do que já não queria. Deve ter sido aí que as forças se trocaram. Não entendo como foi possível que a minha intenção tivesse derivado tão bruscamente para fora do recipiente que me continha. Mas aconteceu, e quando aconteceu eu passei para o lado das gaivotas e abandonei o bicar rotineiro na terra empobrecida pelas sucessivas secas.
- Pode acontecer que amanhã, quando acordar, o aconchego quente do lume me torne os olhos mais brilhantes e eu não veja e esqueça e nem me lembre de outros caminhos que poderiam não ser este. Pode acontecer que amanhã, ao acordar, eu consiga perceber como minha esta casa e este ressentimento. E aí estarei bem, não pensarei no que poderia estar em vez do que está e estarei outra vez bem, seguindo o caminho que foi escolhido muito antes de eu sequer ter pensado em ser.
(continua)

Torcato Matos

1 comentário:

Anónimo disse...

Variações?
;-)