segunda-feira, outubro 30, 2006

A dificuldade de ler (69- C6/P3)

Quando cheguei, ontem à tarde, a estação estava vazia. Ninguém mais desceu nesta paragem e provavelmente o comboio nem pararia se o revisor não soubesse que havia um passageiro com este destino. É certo que chovia. Mas isso até poderia ser razão para haver gente recolhida no átrio sombrio. As bilheteiras estavam fechadas como se fosse evidente que ninguém irá ter vontade assim de repente de sair daqui. À frente da estação um largo escorrendo alguma água e espaço aberto até uma distância exagerada. Na cidade os lugares estão mais próximos. Não nos falamos mas gostamos de estar em colmeia a fingir que não pertencemos uns aos outros. Aqui há uma estranha segurança como já te disse. As casas ficam a uma distância assinalável umas das outras, dando tempo à terra de ser visível. As indicações que me deste foram milagrosas. Suponho que estas horas todas depois ainda não teria encontrado esta casa que me foi destinada. A chave que trouxe e que agora guardo como um talismã, tirou-me a última dúvida sobre o meu novo refúgio. Gostava de te descrever esta casa mas ainda não olhei bem para ela. A mala pesava e cheguei demasiado cansado para me pôr a vasculhar os compartimentos e a procurar vestígios de anteriores habitantes. Tu tinhas-me recomendado que não trouxesse livros. Mas eu já não sei se as tuas recomendações são bondade ou ironia. Como sabes que faço questão de não seguir os teus conselhos, às vezes já me parece que me dás os conselhos que queres que eu não siga. Seja como for vim carregado de livros. Metade do peso eram livros. Trouxe tudo o que sabia que em condições normais me recusaria a ler. Tudo o que é aborrecido como a morte. Não te rias. Vejo perfeitamente que te estás a rir.
A esta distância não é importante o que penses. Para todos os efeitos agora estou por minha conta, e se te faço saber estas coisas sobre o que se está a passar comigo é agora porque ainda não criei raízes e ainda não sei o que fazer ao tempo. Brevemente deixarás de saber de mim apesar de me parecer que é isso mesmo que queres. Não deveria ter-te dito atrás que não tenho grandes expectativas sobre o que virá a seguir. Por uma questão de orgulho. É-te indiferente o que eu espero ou não. Mas não quero ir por aí. Não me interessa o que pensas. Ponto final.
Foi esta manhã que ouvi lá fora as pessoas a saudarem-se com todo o entusiasmo. Pareceu-me bem. Animou-me. Achei que tinha chegado a um lugar em que as pessoas se conhecem e reconhecem em vez de se temerem. Fiquei contente de aqui estar e preparei-me com cuidado para sair à rua e dar uma primeira impressão agradável, sem estrondo, sóbria. Houve mesmo um instante - daqueles que resultam da tensão natural - em que admiti que tinha todas as condições para vencer muito rapidamente. Posso dizer-te - porque aqui a esta distância não verei o teu olhar sarcástico - que fui capaz, num relance, de me ver já num futuro bem sucedido e mesmo brilhante.
O que me destroçou foi o tom. Um tom monocórdico de bons-dias dados como que mecanicamente. Foi uma verdadeira martelada no sorriso franco com que saí à rua. Logo aqui, ali à porta, a primeira pessoa que passou, quase sem olhar para mim, disse aquele bom-dia mortal.
(continua)

Torcato Matos

3 comentários:

mfc disse...

Podemos teimar em não ver,mas somos até à medula seres gregários.

vague disse...

ah o tom!

O tom :)

addiragram disse...

Matamos as palavras pelo uso e desuso,mas ainda, com o olhar!