quarta-feira, novembro 01, 2006

A dificuldade de ler (71- C6/P5)

Devo dizer que não foi fácil regressar aqui. Estarás neste momento a lamentar o meu execrável sentido de orientação e a rir-te com gosto, imaginando-me às voltas sobre o mesmo lugar, perdido num labirinto construído na minha imaginação. Estou-me nas tintas para o que tu penses. O facto é que este não é o meu meio. Não me sei mover em lugares em que as pessoas são distantes e mudam de tom quando me falam, e em que as casas se parecem mover e mudar de aspecto de cada vez que as olhamos. Esta terra não é sólida. Molda-se como uma gelatina à forma que por acaso a contenha. Tinha andado mais de quinze minutos quando vi uma jovem a quem pensei perguntar o caminho. Foi aí que percebi que não sabia como indicar o meu destino. Hesitei. Ela cumprimentou-me com a palavra chave: bom-dia. Pareceu-me, mas não tenho a certeza, que usou uma maneira ligeiramente diferente da dos seus conterrâneos. Eu ouvi uma coisa diferente mas sou suficientemente lúcido para aceitar que possa ter ouvido o que queria ouvir. Sim, exactamente como tu dizes que eu funciono, quando me queres irritar. Estupidamente perguntei-lhe se me podia dizer qual era o melhor caminho para chegar a minha casa. Ela não se mostrou surpreendida e disse que seguisse pela rua em frente e virasse na terceira à direita. Seria depois a terceira casa à esquerda.
E era. Poucos minutos depois estava aqui sentado a pensar que este não podia ser um lugar para permanecer muito tempo e muito menos para ousar sequer pensar em penetrar nos seus segredos e fixar-me para sempre. Repara que ela sabia que era esta a minha casa tendo eu chegado aqui ontem à noite sob chuva e com as ruas desertas. E eu sabia que ela sabia porque senão não lhe teria perguntado. Este não é um lugar normal, meu irmão. Tu estiveste aqui alguns dias e retiraste-te com o rabinho entre as pernas. Eu sei. Tu não me disseste mas a mãe contou-me. Desesperaste e foste embora.
Está bem. Por isso vou eu ficar. Vou vencer o meu medo e vou ficar. Não é para te vingar. É para mostrar que sou mais capaz do que tu. Que vou mais longe; que aguento melhor as decepções e sou mais persistente.
Ainda não sei como vou fazer. Tenho que respirar fundo e pensar uma coisa de cada vez. Este não é o meu meio e vou ter que lutar todos os dias contra isso. Sei que os que nasceram cá têm à partida mais facilidade em orientar-se. Sabem alguns segredos mas, acima de tudo, é este o ar que melhor conhecem; nasceram a respirá-lo e tratam-no por tu. Eu cheguei agora. Não sei nada. Fico assombrado com o mais pequeno movimento da vegetação. E estou à defesa: à espera de um golpe que há-de vir quando menos o esperar. Apenas tenho esta decisão de não fugir para não me parecer contigo e ficar também, para sempre, a rir-me das impossibilidades.
(continua)

Torcato Matos

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