terça-feira, outubro 17, 2006

Postdoze

Houve um momento em que citaste, há muitos anos, com cínico prazer, que o amor é eterno enquanto dura. Eu, que ensaiava impossíveis, e tinha o desvario do rigor, não fui capaz de encaixar uma frase tão fora do contexto. Sei agora que te protegias das surpresas, como entretanto me apercebi ser comum entre as pessoas racionais. Se não tivesses vinte anos e, digamos assim, cumprisses os primeiros passos na hipótese do amor, talvez se justificasse a insistência no jogo defensivo. Mas a tua preocupação, a tua desconfiança, era sobre o que fizera eu nos cinco anos que tinha a mais e que, mesmo assim, não eram suficientes para me colocar à altura da tua sobriedade imaculada.

O tempo mostrou-me que as frases precisam de um contexto. Sorrio, com a minha própria ironia, quando vejo livros que reúnem frases famosas de gente famosa e as colocam à disposição do leitor preguiçoso comum que assim se municia sem tem que passar pelos caminhos agrestes da aventura de ler. Essa parece ser a nossa época: deixar que outros extraiam da ganga as pepitas e no-las sirvam em bandejas de comida rápida. Como contestar a benignidade do projecto? Negar apenas porque em dado momento fomos derrotados por um atirador furtivo de frases cínicas?

Surpreendem-me sempre as pessoas cheias de certezas. Umas agarram-se a deuses capazes de todas as respostas, outras aos objectos soltos que vão dando movimento aos dedos e às ilusões. Perante eles o nosso ponto de vista é sempre indefensável se não tirarmos partido de alguma forma de crença que sustente a parte imponderável da racionalidade.

Levei anos até aceitar que o amor só é eterno enquanto dura. Foi já no ocaso, quando já não era sustentável aceitar os precipícios que rondavam as tuas certezas. Só percebi quando já não havia no discurso da casa uma palavra que fosse minha, que não tivesse sido emprestada de fora para soletrar com cuidado o estranho equilíbrio dos afectos. Dei por mim e a eternidade tinha acabado; o tempo tinha-se esgotado e percebi que isso tinha acontecido anos antes de ter dado conta.

Desde então tenho tentado perceber o que mata o amor. O que torna efémero o que era para ser definitivo. O que retira dos corpos o prazer da cumplicidade. O que contamina, como uma bactéria, a suposta ligação entre dois seres.

Provavelmente já sei. Mas estou à espera que o tempo que passa me permita aceitar a volubilidade pragmática das células a sobrepor-se à dedução razoável de serem preferíveis duas derrotas a uma vitória.

Aibieme

3 comentários:

vague disse...

Eu acho que a perfeição não existe ainda bem que não para termos sempre o desejo de a alcançar, mas quando leio textos destes, sinto que
:)

aibieme disse...

Obrigado, Vague. Este teu comentário aberto deixa-me espaço para acreditar que gostaste muito do texto. Não seremos muitos mais, mas já somos dois... ;)

vague disse...

:)

'O desvario do rigor' !


este blog é uma agulha preciosa no meio de uma caixa de costura já pré-seleccionada;)