quarta-feira, outubro 04, 2006

Sempre

Há quem pense que a montanha a que subo, perdendo-me na dor e na sombra, é o conhecimento.
Seria então a minha vida uma metáfora, um jogo de palavras.
E daí se concluía que a esfera que teimosamente faço rolar montanha acima, nada mais seria que o esforço necessário a todo o saber.
Nada disso é verdade a não ser o jogo de palavras.

Tal como as espécies que não se adaptam, extinguiram-se os deuses há muito tempo.
Inadaptados também, postos à margem, numa memória apenas evocada pelo poder, os deuses saíram de cena abandonando o mundo à sua sorte.

O tribunal que me condenou já não existe.
Caducou juntamente com a esperança e a justiça.
Finou-se por falta de condições de aplicabilidade.

Quem fiscalizaria a dor do condenado?
Quem daria ordem de liberdade?
Quem premiaria os bem-comportados?
Quem enterraria os mortos?

Foram-se embora os deuses com a sua autoridade e levaram também a razão do medo e a força da obediência.
Levaram consigo as trevas mais evidentes e o cheiro inebriante do Olimpo.
Saíram daqui mergulhados no próprio tédio, incapazes de saber o que fazer com tanta força.
Abandonaram os deuses os erros que criaram e esconderam a cara de vergonha.

Eu fiquei o erro que sou.
Cumpro a minha pena como sempre fiz.
Subo à montanha empurrando a esfera e lá em cima deixo-a rolar testando a constância da gravidade.

A minha condenação foi para sempre.
Não é preciso esperar que venha o carcereiro e me solte.
Nada é mais solitário que a eternidade.

Sísifo

3 comentários:

Bastet disse...

Esperemos então que a pedra que fazes rolar um dia se canse de tanta obediência cega e desafie ela as leis da gravidade.

sisifo disse...

Há sempre um reduto intransponível para a desobediência. O mal moderno, chamemos-lhe assim, consiste na substituição de uns deuses por outros. A manifestação da liberdade continua a ter uma margem muito apertada e é provável que não passe de um conceito utópico. Claro que vai dando para as encomendas. Como Sísifo quero apenas dar conta dos limites da 'minha' liberdade. São raras as palavras que resistem a uma observação crítica mais profunda. E embora saiba que é uma perda tempo (e o que é que não é perda de tempo?) movo-me à volta da obsessão com a obediência. Se eu tivesse estudado direito talvez o conceito se tivesse tornado banal, mas assim, depois de se terem ausentado os deuses, obedeço a quem? A que obedece a gravidade? A Hipatia falava há dias da poeira das estrelas. É por esse lado que procuro.

Bastet disse...

Talvez que Deus esteja apenas adormecido. E a gravidade, e no fundo o melhor da nossa essência, e também o melhor da liberdade, a Ele continuem a obedecer. Obedecerá porventura ainda a desobediência dessa tua pedra, bem como as manifestações mais puras de liberdade e de revolta, ao Deus desconhecido que eu procuro achar que está connosco - poderemos chamar-Lhe o pó das estrelas.