Também não sei dizer a que ponto me interessam as vítimas porque não me interessam por serem vítimas. As vítimas apenas me interessam pelo facto de não conseguirem deixar de ser vítimas. É provável que me veja ao espelho e o reflexo me cegue. E logo a seguir pense que estou no meu lugar e poderia estar noutro lugar se tivesse querido ir à procura dele e soubesse enfrentar com a violência necessária os artifícios escabrosos da guerrilha.
É inevitável falarmos de nós próprios. Não me dói nenhuma esperança nem gosto de coisas insossas como solidariedade e outras palavras ainda mais compridas. O medo é simples; a solidariedade enrola-se na língua e fica sempre com uma parte comida dentro da garganta. Interessam-me as vítimas para tentar perceber porque suportam a dor em vez da morte. Porque ficam à espera sabendo, e eu sei que sabem, que nada vem a seguir a não ser tempo e mais tempo de sofrimento.
Há sempre uma vítima a abençoar a glória de um vencedor. Não uma vítima mas várias, porque estas coisas medem-se pela quantidade. A qualidade de um vencedor mede-se pela quantidade de vítimas que provoca. O riso é tanto mais profundo quantos mais forem os súbditos que se rendem ao ridículo.
Por detrás de um homem de sucesso estão, a grande distância, é certo, um punhado equivalente de miseráveis a quem, evidentemente, faltou o querer, a inteligência, o génio, a ambição, a educação, a força e a ganância pare reter junto de si o pouco a que tinham direito.
O interessar-me pelas vítimas, e como já disse nem é bem pelas vítimas mas pelo que as leva a ser vítimas, não quer dizer que goste delas. Não gosto delas nem mais nem menos do que dos abutres que as comem - sem querer ofender os abutres cujo carácter a ciência tem aos poucos reabilitado.
E quando falo das vítimas que me interessam, ou desse jogo estranho que leva as vítimas a procurarem a dor e a encaminharem os seus corpos ordeiramente para a deglutição macabra dos poderosos, refiro-me às vítimas mesmo e não àquelas que soltam queixumes estridentes por estarem ainda na escalada ascendente da usurpação e se sentirem por isso injustiçadas pela lei e pelos que as atiçam.
Este passatempo não tem limites. Depois de um ardiloso comedor morrer, vem outro que lhe fica com a carcaça e nos ombros dos seus iluminados amigos há-de subir ainda mais uns degraus na escala da filantropia. Há dois tipos de degoladores: os que se fecham no silêncio dos seus castelos onde não chegam os rumores pesados da carnificina e aqueles a quem o sangue ferve com mais vigor perante a visão ululante da chaga aberta.
Beatriz Teresa
2 comentários:
Percebo bem essa repulsa pela dor farisaica, que é bem mais execrável que a perfídia do algoz.
Esta, pelo menos, é verdadeira.
Eu cá não curto vítimas. Abro excepção ao Sisudo porque gosto de paisagens montanhosas.
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