sexta-feira, setembro 15, 2006

A dificuldade de ler (55- C4/P7)

O evento de que falo é esta grandiosidade de vos ter aqui testemunhas de uma nova era que eu sinto como uma nova oportunidade para o Homem. É aqui hoje que se enuncia o futuro, neste jardim inesperado de Pexiligais em que as palavras se fizeram corpo e que eu, nesta minha humilde pessoa, nesta irresistível fortuna, tive uma visão, e mais do que uma visão, uma audição, e mais do que uma audição, um aroma, e mais do que um aroma, toquei, e mais do que tocar, saboreei a subtileza total do divino. Daí o extraordinário extraordinário! Não há, não consigo enunciar outra palavra para o que é agora este momento, para o que foram estes dias, para o que vai ser a partir de agora cada um dos momento da minha vida. Nada se pode sobrepor a esta revelação. Agora estou aqui de coração aberto perante vós a demonstrar a minha decisão de tudo largar por uma única causa que se exprime numa única trindade: a palavra, o vinho e a mulher!
Digo dando-vos porque é meu desejo espalhar a generosidade. Nada mais interessa do que a dádiva, a oferta desinteressada de tudo o que se tem sem retorno, sem paga, sem comércio de vida ou de morte, pura transacção de partilha desenfreada em que nada é de ninguém e tudo é de todos. É no dar que está a essência do divino, na oferta brusca de inocência onde antes havia interesse e na misteriosa substância de ter como posse apenas a consciência. E dentro, claro, dentro do interior, acedendo ao íntimo e à condição inigualável de recusar a ocultação e transportar nas entranhas o segredo e a escuridão. Luz, meus amigos, luz em toda a parte, tudo à vista, sem esquinas a tapar a imprudência e com a imprudência a derrubar todas as arestas cortantes do prazer. O do de que voz falo é como uma nota de música. Porque hoje as palavras que me ocorrem, hoje e para sempre, são palavra musicais, violinos a tocar no cérebro divino, orgãos em uníssono a desbravar os espaços ainda virgens da sonoridade abstracta. Falo, portanto, para que se ouça uma música nova e se engrandeçam os sons como prova de alegria, esta vibração que agora nos submerge e nos leva para lá da nossa tentação de querer ser nada com uma aparência altiva. Estou aqui convosco para que eu também me transcenda e ilumine.
Nem tudo o que é possível é impossível. A minha experiência de homem de letras diz-me com voz sussurrada que é necessário ultrapassar as barreiras da morte. É necessário que sejamos capazes de dar alento novo à decadência e empurrar para fora dos carris a inércia secular do conformismo e da humildade. Cada uma das nossas células é uma vitória sobre o caos. Cada um dos nossos pensamentos é uma vitória sobre o acaso. Todo e qualquer acto de construção é uma vitória sobre o nada. Todo e qualquer símbolo que passe entre dois homens é uma vitória sobre o fim. Cada palavra que se escreve é uma vitória sobre o tempo.
(continua)

Torcato Matos

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