terça-feira, setembro 19, 2006

A dificuldade de ler (56- C4/P8)

Esta uma é a conferência que aqui nos reuniu e uniu, e levou o nosso espírito para o desabar consequente da imensidão. Voltar a casa, agora, é como que um retorno do infinito e por isso eu não vou. Vou ficar. Vou permanecer neste lugar sagrado, nesta ideia sagrada, neste saber divino que agora me recobre e me fascina para todo o sempre. Revelou-se-me aqui o mundo num corpo feminino, num corpo literário que bebido até à última gota me inebria a alma e a razão.
Digo visão como podia dizer milagre. Subo ao topo da hierarquia dos sentidos e recorro a cada instante à tentativa de me perguntar se é verdade. Quero saber. Quero saber tudo embora não queira saber, não me interesse saber e me apeteça acima de tudo pensar o que sei como o devaneio especial que me tomou. Sou agora imune à sombra. Sobrevivo ao fogo e ao gelo, e sobreponho a tudo os desejos, o amor e a paixão.
Quero com integrada dizer da minha totalidade, de já não ser uma manta de retalhos, de já se não poderem perceber em mim os granulos elementares de que era feito. Operou-se em mim a transmutação. Passei de água a vinho, de lua a sol, de excremento a ouro, de coisa a Deus. Agora que a tenho, que a vi, que a possuí, já não sou partes mas todo. Entrei no Olimpo pela porta grande e sentei-me na liberdade eterna da loucura. E o do que pronuncio repetido, repete a música celestial, marcha nupcial de uma vontade que eu julgava morta e que por força das letras, por força de um rosto de olhos semicerrados, por força de um corpo que se ofereceu no calor em brasa, renasceu, reviveu, ressuscitou.
Agora o que, porque há sempre um que. E por que causa hei-de eu lutar senão a causa do regresso ao paraíso perdido. Se repararem é sempre no passado que está a perfeição. Todas as teses, todas as religiões, todos os sistema de pensamento, todas as filosofias, todas as promessas dos políticos se referem a um regresso à perfeição do passado. Foi lá atrás no tempo que as coisas se portaram à altura de criar o ser humano perfeito. Depois as coisas não correram bem. E é por isso que nós aqui estamos, para dar um novo alento ao mundo, às letras e às funções afirmativas do corpo. Queremos agora iniciar uma nova história depois da história ter morrido de morte natural.
É aqui que o aqui faz sentido. O lugar que é nosso é o lugar a que chamamos mundo e a forma regular dos corpos que dançam sobre a dureza impune da Terra que ao mesmo tempo alimenta e se alimenta do alimento que produz. Ciclo de sentido e ciclo de lugar, aqui onde estamos porque onde estamos é sempre o nosso aqui. Viemos para sentir e depois de sentir estamos a celebrar, sentindo ainda o claro-escuro da incerteza a brilhar no alpendre iluminado da satisfação.
(continua)

Torcato Matos

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