segunda-feira, setembro 25, 2006

Outro

No lado de lá da montanha já começou a chuva.
Sei, por que me chegou o cheiro novo da vida a sair da toca.
Também ouvi os trovões e as frases curtas das aves.
Senti até na pele o efeito de uma certa razão profunda para desejar.
Provas demais de que esteja já a chover no lado de lá da montanha.

Os passos pesam mais na lama.
Não é ainda mas sei que em breve o percurso será mais doloroso.
É assim e assim será.
Como as manhãs e o vento e a sombra e o efeito anímico de um corpo belo - belo pelo efeito anímico que provoca num corpo.
Mecânica do cosmos e mecânica dos sentidos.
Química da mão que dobra sobre si e ampara o corpo no bordão.

Poderia ter-me ocorrido não aceitar.
Poderia ter-me ocorrido procurar outro destino, outra perturbação.
Poderia ter-me negado a permanecer no meu caminho, na minha solicitude.

Sei que não o pensei porque não quis.
Tive ao meu alcance outra forma de liberdade e outra forma de dor.
Era apenas uma ligeira mudança na bifurcação dos caminhos e teria ido para outro céu.
Sei que não o pensei porque não quis.

Seria agradável dizer agora, com a forma arrogante que mereço, que escolhi o melhor.
Seria agradável porque talvez o meu rosto perdesse por momentos a sisudez da indiferença.
E eu sei, por ter aprendido na infância, que os músculos chocalham soltos quando nos rimos.
E também sei que poderia dizer tudo o que quisesse, fosse ou não verdade, fosse ou não aquilo que sentia.

Acontece, e os factos são os meus guias, que estar aqui, nesta sequência solitária de passos, é apenas resultado da forma arredondada como a chuva cai, hoje do outro lado da montanha, amanhã aqui sobre mim, gelada e desconfortável, à espera de de novo ser alguém numa figura viva qualquer que a beba.

Sísifo

3 comentários:

Bastet disse...

A sisudez da indiferença... Lá está o sisudo do sísifo! Sempre tive razão afinal!

Zumbido disse...

Talvez ele tenha dito isso em tua homenagem. É um gajo muito estranho. Aquela pedra mata-o. E a obsessão pela montanha... Umas férias na praia é que lhe faziam bem. :)

Bastet disse...

Ai do gajo que vá de férias para a praia que quem o mata de inveja sou eu!