quinta-feira, novembro 02, 2006

A dificuldade de ler (72- C6/P6)

Como vês, hoje foi um dia duro. Duro e ingrato como é próprio dos dias em que se quebram as verdades universais. Sei que amanhã vou descobrir novas incertezas e vou ficar a não saber coisas que hoje ainda sei. É provável que esta seja a última vez que te reconheço e que os momentos que aí vêm me tornem irremediavelmente distante. Para ti isso não é novidade: sempre soubeste que este não era o meu meio, e disseste-me para não vir para que eu viesse com mais entusiasmo. É provável que esqueça o teu nome como quase já esqueci o do pai e o da mãe. Sei que é aqui que não vou ser feliz, mesmo que essa nunca tenha sido a minha ambição. Poderia ter escolhido outro lugar qualquer ou deixado que o acaso decidisse por mim.
As vozes que ouço lá fora, agora que anoitece, são alegres de quem não regressa cansado de um dia de trabalho e está à espera da noite para conhecer. Mas não ouso, hoje, voltar a ouvir-lhes o tom diferente da voz a dizer-me boa-noite. Fico eu, desta vez, a olhar por detrás das cortinas, a ver as sombras que evoluem na rua, divertidas na sua maneira resoluta de andar, como se tivessem uma absoluta ligação ao tempo e ao espaço e por isso não temessem nenhum movimento inesperado. Eu não sou daqui. É provável que nunca venha a ser daqui. Serei estrangeiro, então. Ficarei prudentemente à beira das coisas, na expectativa de um desenlace inesperado. Eles não esperam nada inesperado e por isso eu não sei o que eles esperam nem sei o que eles são. Conheço-lhes as vozes que tomam para mim a diferença na expressão e me põem com isso no meu lugar à margem.
Tu dirás, como sempre disseste, que eu ouço o que quero ouvir e que me coloco no lugar em que sou capaz de estar. Dizes isso depois de teres fugido daqui numa reacção brusca, de que ainda hoje te arrependerias se fosses capaz de te arrepender de alguma coisa. Eu arrepender-me-ei de ficar, da mesma maneira que me lamentaria para sempre se tivesse agora a coragem de abandonar o meu destino. Talvez eu dificulte um pouco a linearidade dos sentimentos. Admito que algumas coisas possam não ser exactamente como eu as vejo. Mas este é o meu primeiro dia aqui, meu irmão. Ontem, por esta hora, passava eu os meus passos pelas poças de chuva à procura da fechadura onde cabia a minha chave. Estou agora num lugar estranho, com um tempo estranho, ouvindo pessoas estranhas que rezam à lua e sabem tudo sobre mim com um simples olhar. Passou pouco tempo. O suficiente para eu saber que cometi um erro e estar na disposição de o manter para todo o sempre. Cometo este erro em vez de outro qualquer. Que é que isso tem de especial?
Digo-te adeus caro mano. Apesar de tudo sempre gostei de ti. És o meu irmão mais velho e ensinaste-me a não aprender, a não gostar, a não querer, a não sonhar. Devo-te, portanto, tudo o que poderia querer não ter sido e sou.
(continua)

Torcato Matos

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