quarta-feira, novembro 08, 2006

A dificuldade de ler (76- C7/P4)

TM - O seu livro de sessenta e oito, "O pardal apardalado", também resultou de uma sublimação?
IM - Poderia dizer-lhe que sim e você ficava satisfeito. Como prezo acima de tudo a honestidade, digo-lhe que não sei. Ou de outra maneira: que raio de coisa é que pode fazer um rapaz de 18 anos agarrar-se a um caderno que não seja uma terrível vontade impossível de estar a fazer outra coisa? Eu não sei... Realmente não sei. Hoje vejo gajos a serem cínicos ainda adolescentes. Aprendem com a televisão. Mas há trinta anos era preciso ser de muito boas famílias para o conseguir. Quando não se consegue rir contam-se anedotas.
TM - A nota do DN era muito animadora...
IM - Você andou a ler essas porcarias todas?!
TM - "... vertigem dos sentimentos ilustrada com a amargura de sorrisos apenas entreabertos. Os sons que rasam as janelas são demências a florir e o voo solitário acaba por ser o refúgio do herói. Mil e uma incertezas perturbam os segundos de uma alma atormentada pela arte da culpa..."
IM - O tio Alberto era um prato. Ele escreveu muito toda a vida. Mas ninguém o percebia. No jornal acabou a fazer os elogios fúnebres e alguns fretes aos amigos.
TM - Qual é o assunto d'"O pardal apardalado"?
IM - Assunto? Que quer dizer com assunto?
TM - O tema. A temática. A motivação.
IM - Você é engraçado. Não leu o livro?
TM - Não o consegui encontrar. A editora já não existe.
IM - Hum... Quer mesmo saber? O assunto é o mesmo: a prima Vera.
TM - A sua prima?! A filha do seu tio Alberto?
IM - Daqui a pouco o Torcato conhece a minha família toda. A minha prima Vera era mesmo o meu assunto preferido. Toda ela. Não me lembro nada do pardal mas sei que tinha a ver com ela. Sei que foi por causa dela. Quando foi publicado já ela estava em Paris. Se você quer um assunto interessante, um verdadeiro furo jornalístico, procure e encontrará uma prima Vera em cada revolução. É uma inexplicável constante social.
TM - Ela estava em Paris no Maio de 68?
IM - Mais do que isso, ela foi um dos motores. Mas isso é um assunto que não me interessa em nenhum aspecto. Não nasci para promover a minha prima.
TM - Mas escreveu livros sobre ela...
IM - Eu não disse isso. Os livros não são sobre ela: são por causa dela. É completamente diferente. Na pior das hipóteses os livros são sobre mim. Sobre o eu que eu era naquela altura. E como era pouca coisa, o livro é nada.
(continua)

Torcato Matos

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