quinta-feira, novembro 09, 2006

A dificuldade de ler (77- C7/P5)

TM - Em tudo o que li sobre si nunca notei essa modéstia que agora assume. Sente que o tempo o reduziu? Perdeu combatividade?
IM - Foi o Torcato que preparou essas perguntas?
TM - Fui.
IM - Onde é que foi buscar essa da modéstia? Eu sou um intelectual! Um intelectual a sério. Um intelectual modesto é um intelectual morto! Os livros que eu escrevi há mais de trinta anos não têm nada sobre mim! São livros sobre um adolescente ranhoso e atrasado mental! Percebe? Um gajo tão parvo que preferiu fechar-se num quarto a escrever palermices em vez de sair para a rua e comemorar estar vivo e ser jovem e ter saúde...
TM - Não precisa de se enervar. Apenas quero dar aos leitores informações actualizadas sobre si.
IM - Não estou enervado. Estou a dizer-lhe o que penso. E eu digo sempre o que penso, doa a quem doer. Se me fizer perguntas cretinas, chamo-lhe cretino com as letras todas.
TM - Será sempre a sua opinião. Eu faço o meu trabalho. O senhor responde se quiser.
IM - É uma coisa que me impressiona. Se eu lhe chamar cretino fica ofendido?
TM - Devia ficar?
IM - Eu perguntei primeiro.
TM - É a sua opinião. Não é por me chamar cretino que passo a ser. Não tem o dom de me transformar num cretino. Antes e depois de me chamar o que quer que seja, eu sou o mesmo.
IM - Eu ficaria terrivelmente ofendido. Consideraria uma difamação. Uma afronta. Não consigo interpretar alguém que ouve uma ofensa e dá a outra face. Não consigo entender como se consegue viver defendendo apenas os dois metros quadrados onde se vai ficar enterrado.
TM - Talvez eu não tenha nenhuma fama a defender. O meu bom nome não vale o que vale o seu. Pelo menos em termos comerciais.
IM - Tretas. É tudo uma questão de sensibilidade. De educação. Eu fui educado a competir, a procurar o meu lugar à força. Luta por luta. Disputa de recursos: o mesmo que faziam os nossos antepassados há milhares de anos. Quando quebramos esta regra a evolução pára, a civilização morre. Passamos a invertebrado.
TM - Eu acredito que só se torna violento quem se sente ameaçado. Isso sim é uma reacção instintiva. Digamos que é o medo que desperta a agressividade.
IM - Eu não tenho medo de ninguém e há pessoas que me apetece agredir. Pessoas, coisas, animais. Tudo o que me parece mal deveria ser destruído. Como vê, uma acção de pura protecção do ambiente. Protejo o ambiente liquidando tudo o que o destrói. Já me imagino o herói solitário a não deixar pedra sobre pedra no caminho dos que querem destruir o planeta.
(continua)

Torcato Matos

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