sexta-feira, novembro 17, 2006

Ocaso

Já não gela o topo da montanha.
Escoaram-se as últimas águas anos atrás, quando o tempo quente substituiu a arte de sobreviver.
Junto com a água foram alguns sonhos, e o que se quis que sobrasse como método, foi deixado ao acaso.
Havia então uma providência que sabia por nós todos os caminhos.
Ignorar não era, então, uma coisa boa, e acreditava-se.
A fé era toda feita de visões e parecia que a alavanca não era uma força da banalidade.
Entre a terra e o corpo havia transacção de fluídos vitais.

Sou outro velho do Restelo.
Perco o meu tempo em justificações impossíveis.
Comparo todos os movimentos com a posição onde estava antes e tiro daí impressões de desilusão.
Não são fáceis os caminhos de quem vê.
Por ter passado a ser rotina tropeçar nos pequenos ramos de que antes a tradição troçava.
Hoje come-se com a cegueira e olha-se para qualquer diadema com a ingenuidade dos primitivos.
Cada divindade decadente deu origem a múltiplas divindades douradas.
Os deuses só são deuses enquanto não lhes chamamos deuses.
Entretanto governa o que ainda não tem nome.

Não, não é bom saber.
Pesa sobre os ombros a insuportável responsabilidade.
O que interessa é viver o momento mesmo que seja escasso e precário.
Logo a seguir tropeçar no gesto ingénuo, lido como desgraça e calamidade.
Confundido o instante com o preço da eternidade, dilui-se o rosto seco da facilidade em trejeitos de inocência.
Em algum lugar o génio deixa a lâmpada acesa para que o caminho seja cada vez mais fácil ao cada vez mais néscio.
Orgulhosamente néscio.

Já não gela o topo da montanha.
As estações onde antes parávamos para beber já são secas, ausentes, desabitadas.
Todos os regatos confluem para um lugar apenas onde se afogam prazeres simples e banais.
Fora eu eterno e o incómodo me mataria.
Mas assim vou esperando que a intenção casual que colocou na terra a vida, siga o seu curso de indiferença perante a indiferença que se olha a si mesma com desdém.
A montanha não teme diluir-se no nada.

Sísifo

1 comentário:

mfc disse...

Saber é analisar. Analisar é ter a esperança de chegar a uma conclusão, que pode ou não ser comprovável.
E se o for?
E se ela abalar os alicerces em que fomos formados?

...benditos sejam os fieis!