segunda-feira, novembro 06, 2006

A dificuldade de ler (75- C7/P3)

TM - O DN diz, e cito: "... transcreve, numa maturidade insuspeitada, um regresso da primavera pleno de metáforas, revolvido numa consciência permanentemente material e evocando com subtileza as belezas próprias de uma juventude que tem o futuro na mão. Adjacente ao peculiar ensejo de comunicar um estado de alma, Isidro enumera sem vacilar, a fugacidade imanente de todas as transgressões. As influências não são óbvias, temos um criador! ..."
IM - Foi o tio Alberto. Já me lembro. Mas deve ter sido a minha mãe que lhe ditou o texto. Ela não deixava nada ao acaso. E foi ela que lhe arranjou o emprego no DN. Mas é melhor não pôr isso na entrevista. Mas eu explico, embora seja um bocado embaraçoso.
TM - Se não quiser não é necessário explicar o emprego do seu tio no DN. Passou muito tempo e talvez não seja um pormenor relevante da sua vida literária.
IM - E não é. O que digo embaraçoso é a génese da "Volúpia de uma andorinha". A filha mais velha do tio Alberto - e minha prima - chamava-se, e ainda se chama, Vera. Era um nome relativamente comum na altura. À partida um nome idêntico a tantos outros, sem nenhuma carga mitológica e com a carga semântica benigna da verdade. O problema é que nessa altura era comum as famílias serem numerosas e era raro o rapaz que não tinha algures uma prima Vera. Ainda assim, nada de mais. Não deveria ser diferente ter uma prima Vera ou uma prima Zita. Mas há fenómenos que nos ultrapassam. Vários estudos feitos na década de oitenta demonstraram que enquanto uma prima Zita é sempre espalmada, usa óculos e não se sabe vestir nem despir, uma prima Vera é estranhamente sobre-dotada pela natureza e, por um desígnio integralmente insuspeito que nem o aquecimento global consegue explicar, está sempre particularmente adiantada para a idade.
TM - A andorinha é a sua prima Vera?!
IM - Não, de maneira nenhuma. A minha prima Vera é a volúpia. E a andorinha, se você não percebe também não lhe vou explicar...
TM - De facto não consegui encontrar o livro. Está completamente fora do mercado.
IM - E para que é que queria o livro?
TM - Quis ler os seus livros para me preparar para a entrevista...
IM - Ó homem de Deus. Que é que você estava à espera de encontrar no livro? Eu tinha dezassete anos, a minha prima Vera tinha vinte anos e era a materialização do desejo. Estávamos em sessenta e seis. Que é que acha que eu podia fazer além de escrever um livro? Quando não conseguimos chegar aos objectos, escrevemos palavras. Mas isso não implica que as palavras falem dos objectos. As palavras são a baba que vai escorrendo para aliviar a pressão. Há quem lhe chame sublimação. E de facto é sublime...
(continua)

Torcato Matos

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