domingo, novembro 12, 2006

A dificuldade de ler (79- C7/P7)

TM - Acha que "A Águia da discórdia" era premonitório relativamente ao vinte e cinco de Abril?
IM - Eu não tinha sonho nenhum. Eu não era capaz de materializar, nem na forma de desejo, as estranhas sensações que a prima Vera me proporcionava apenas pelo facto de existir, ainda que a grande distância, a mesmo muito grande distância. Era costume a família mais chegada reunir-se algumas vezes por ano. Mas a única altura em que a prima Vera aparecia era no Natal. Não sei se consegue aperceber-se da problemática ontológica que se esconde por detrás de uma vontade insistente que valoriza o ano apenas pela ideia que há-de chegar a noite de Natal. Eu, tal como as crianças, esperava a noite de Natal. Mas o que eu esperava na noite de Natal, a minha estrela de Natal, a minha epifania era a prima Vera.
TM - A Primavera no Natal?
IM - A minha prima Vera vinha sempre à grande reunião de família. Eu escondia-me para que não me visse mas vigiava-lhe todos os movimentos. No Natal de setenta e três ela trouxe o noivo.
TM - "A Águia da discórdia" foi publicada em Julho desse ano.
IM - Sim, ainda escrevi a continuação até Dezembro. Depois nunca mais.
TM - Li no DN de Julho de setenta e três: "Sob a forma de fábula, Isidro Medário, o nosso mais prometedor prosador da jovem geração, desenha uma trama extremamente elaborada que de forma rigorosamente poética se encaminha entre o simbólico e o formal, numa ânsia incontida de, perante a anarquia natural das figurações, ofuscar a realidade com uma interrupção brutal do progresso narrativo, evidenciando um estilo marcadamente irregular e criador de soberbas angústias existenciais. O futuro da prosa de raíz sumamente nacional passa por aqui. Depois desta Águia da discórdia nada será como dantes. As letras portuguesas estão de parabéns e entregues em boas mãos".
IM - De novo o tio Alberto. Sempre incapaz de ler. Sempre incapaz de escrever. Sempre incapaz...
TM - Não concorda com esta leitura da sua obra?
IM - O tio Alberto não leu nada. Ele nunca teve paciência para o que eu escrevia. Achava-me um presunçoso. Não percebia uma única palavra. O sonho dele era escrever o meu epitáfio.
TM - Também não consegui encontrar este livro...
IM - Procurou?
TM - Procurei em todo o lado. Andei com a lista dos seus livros nas bibliotecas, nas livrarias, nos alfarrabistas. Está tudo esgotadíssimo. Ninguém entende porque não há reedições.
IM - Hoje não haveria quem lesse aquilo.
(continua)

Torcato Matos

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