sexta-feira, novembro 10, 2006

A dificuldade de ler (78- C7/P6)

TM - Não sei se se apercebe de como é estranho ter passado todos estes anos sem escrever: o seu último livro data de setenta e três...
IM - Quem lhe disse que eu passei estes anos todos sem escrever?
TM - (...)
IM - Não publicar não significa não escrever. Escrevi. Escrevi muito. Escrevi todos os dias. Não deve ter passado um dia que eu não tenha escrito qualquer coisa.
TM - Refiro-me a ficção... Literatura... Texto literário...
IM - Sim, isso mesmo é o que eu tenho escrito todos os dias.
TM - Há pouco disse que lhe faltava escrever tudo do novo livro...
IM - E é verdade. Uma coisa não invalida a outra.
TM - Escreve para a gaveta?
IM - Escrevo para mim. Escrevo para gastar palavras. Nada mais do que isso. É um processo de consumo como outro qualquer. Poderia gastar muitas outras coisas mas gasto palavras. Sou um consumidor de palavras.
TM - As palavras não se gastam...
IM - Hum... Você aborrece-me. Não me apetece explicar-lhe agora como é que as palavras se gastam. Às vezes irremediavelmente. Tem mais perguntas?
TM - Bom, tenho esta que é a principal: vale a pena esperar por um novo livro?
IM - Não. Muito sinceramente não vale a pena esperar. Nunca vale a pena esperar. No último livro... não me lembra agora o nome...
TM - "A águia da discórdia"
IM - ... eu prometi voltar. Era uma sequela. Tinha a intenção de escrever uma história longa, uma tal densidade de texto que não sobrasse nada para contar.
TM - Que é que impediu essa continuação?
IM - Foram várias coisas ao mesmo tempo: uma espécie de conjugação de contrariedades. Houve duas catástrofes principais. As outras foram acessórias. Em menos de uma semana a minha prima Vera casou-se e logo a seguir deu-se o vinte e cinco de Abril.
TM - A Vera era a sua musa?!
IM - O meu mundo desmoronou-se. Eu não sou capaz de dizer que sonhos tinha; que ilusões alimentava ao escrever histórias sem pés nem cabeça; que marcas havia no tempo que eu procurava registar. Sei que há emoções que condicionam os movimentos. E as palavras são veneno puro.
TM - Não voltou a escrever depois do vinte e cinco de Abril?
IM - Nessa altura eu já sabia tudo. Tinha percebido que me faltavam uns pormenores acerca da realidade, havia alguns tópicos que me passavam ao lado, mas acreditava que não eram muito relevantes e que no fundo, embora não me apercebesse, esses pormenores que pareciam surpreendentes, estavam há distância de uns míseros minutos de reflexão.
(continua)

Torcato Matos

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