sexta-feira, junho 30, 2006

Lilly Rose

Agora que parece inevitável a partida, deixo aqui uma última carta de amor.

Eu também não perdoo que se perca a Lilly pela falta de uma palavra. Porque pode haver sempre heterónimos que substituam heterónimos. Mas há heterónimos que se apaixonam por heterónimos e a seguir se perdem de dor pela ausência. Quem somos nós para nos metermos nesse mundo em que os heterónimos vagueiam? Que temos nós a ver com aqueles que não somos? Que poder é este de ser e não ser ao mesmo tempo? Não, não é justo que uma palavra faça desaparecer outra e que essa outra leve com ela as palavras que estavam a germinar num outro lugar imaginado. Porque há sempre a hipótese de não haver a certeza sobre quem se conforma no heterónimo. Há sempre a possibilidade de o heterónimo ser afinal o outro que tem o poder de se esquecer por não querer recordar. Não, não é justo que o heterónimo desanime o outro heterónimo, ou, parafraseando o Luís Filipe Cristóvão, nos contentemos em ser poucos lá em casa para o muito que há para fazer. Não desistas Lilly de encontrar a palavra certa para o espaço vazio. Há no feminino o dom de criar o espaço adequado à presença do masculino. Seja assim, então, a ausência de uma ‘password’ a castração da potência que dava a Lilly a hipótese de ser desejada. Espaço vazio que nada gera, que nada produz, que nada sofre e que nada goza. Não, não é justo que uma palavra elimine outra.

Ikivuku

A dificuldade de ler (5- P/P5)

Devo nesta altura reconhecer que os dados de que disponho sobre a verdade dos factos são tão fidedignos como quaisquer outros e esses outros de que não vou falar por não os reconhecer como legítimos nem legitimamente os conhecer, não farão parte da realidade que à vista de todos construo.

Ao dizer isto não quero forçar as coisas e meter-me numa história que já afirmei e confirmo não me tem como personagem. Eu limito-me – e a palavra é mesmo esta – a enquadrar os acontecimentos de maneira a que eles façam sentido ou estejam muito perto disso. Cada personagem tem a sua oportunidade e ela não podia deixar escapar o momento em que a atenção se concentra nas cartas.

Ao contrário do que pode parecer ele não dorme. Pergunta-lhe: “amas-me?” “Não sei. Tenho que perguntar às cartas. O mundo é dinâmico e o meu desejo escapa-se por entre os dedos. Amo-te quando estás ausente. Amo-te quando sais daqui em missão e te acompanho pensando nos perigos que corres, na violência que enfrentas, no medo terrível de que não voltes. Mas agora que estás cá, não sei. Tenho que perguntar às cartas, ler na tua mão e na minha e nas mãos do destino. Sei lá o que é o amor. Sei que contigo ausente me preocupo e contigo aqui ainda me preocupo mais. Amo-te como? A que te referes?”
(continua)

Torcato Matos

quinta-feira, junho 29, 2006

Pérolas (IX)

Carta? Poema? Incêndio? Intensidade... "... somos poucos para tudo o que há a fazer..."

A dificuldade de ler (4- P/P4)

Foi nessa altura ou um pouco mais tarde, não sei agora precisar, que ele saiu do carro e entrou em casa pela janela das traseiras como um ladrão que não tem nada a temer por saber a casa vazia. Nunca o prenderiam por roubar ar de respirar, por ser um ar como os outros e, bom ou mau, ser património mundial e não propriedade particular de um inocente qualquer.

Fechou a janela com cuidado para não ferir os cortinados que esvoaçavam com uma felicidade assustadora. Isto sou eu a dizer. Porque ele não pensava, nem pensa, em coisas tão banais como a felicidade. O efeito de cada segundo sobre o empilhar de energia nas células é, em si, causa mais do que suficiente para viver.

Havia no compartimento um cheiro a sono que contaminava todas as emoções e propunha ao instante que cedesse o seu tempo à ausência. Acendeu a luz para localizar a cama que todos os dias se mudava.

Depois apagou a luz para dormir. Dizem que os gatos vêem de noite e ele não sendo um gato via de noite os gatos pardos e dormia de dia para não saber o que se passava nem se preocupar com isso.

Ela - ainda não tinha dito que havia uma ela - a que cuidava dele, que era amante e cartomante e quiromante e às vezes adivinhava o futuro, tendo nisso uma percentagem razoável de sucesso, aproximou-se do repousado e sentiu-lhe a febre com a mão na testa de ferro.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, junho 28, 2006

A dificuldade de ler (3- P/P3)

Falava eu do pulso que neste caso pode ser o pulso dele. Estava deitado, sobre a perna direita o pulso direito e sobre o volante a mão esquerda mantinha o seu mais directo pulso suspenso das decisões do cérebro que bebia sangue dentro das catedrais. Pulsava, portanto, o pulso em ritmo de cruzeiro, sinal apropriado à via e à morte e ao mais que se quiser.

Há entre o suicida e o pulso uma relação de amor-ódio. Vários autores, todos experientes, sustentam que o pulso pode ser uma espécie de alter ego do inimigo. Outros autores, também experientes, dizem o contrário mas com menos veemência.

Ele acendeu um cigarro com o isqueiro do carro. Não sei se o renault quatro gtl tem isqueiro. Mas isso não é relevante porque poderá querer dizer que o carro não era um renault quatro gtl. Não me surpreenderia que não fosse porque nenhum outro nome de carro tem, neste momento, a musicalidade necessária.

Abriu a janela de correr com um gesto brusco mas o fumo não saiu. Estava frio cá fora depois das gotas de chuva deslavada. O fumo recusava-se a sair do carro porque tinha o objectivo genético de entrar nos pulmões dele ou de outro qualquer humano. Seria lamentável que uma molécula que fosse se perdesse da sua função primária, do seu destino inscrito nos genes. Lembrei-me que também ele poderia ter nascido para matar e por isso se conformou a comer o fumo como sobremesa de sangue.

(continua)

Torcato Matos

Caminho

Parte tudo dessa vontade de querer construir fora da realidade.
Começamos pelo rosto inocente, pela pele de bronze uniforme e pelo gesto contido dentro dos parâmetros da impunidade.
São inúmeros e insondáveis os caminhos do senhor.

Sei que me querem culpar de uma herança que recebi.
Tentação genética da sociedade com consumo mínimo obrigatório.
Cada ocasião de resistência só o é se for também ocasião de morte.

Não me defino no sentido obrigatório das consciências e por isso não me defino em lugar nenhum.
Passa-se do gesto obscuro ao inevitável consentimento do medo.
Cada facto é um momento desgarrado das potencialidades, limitando o futuro à evidência e reduzindo a zero a esperança.

São inúmeros e insondáveis os caminhos do senhor.
O meu caminho passa pela sombra; ilumina-se com claridades emprestadas pela indiferença.
Outros diriam que os caminhos onde nos cansamos são o outro lado das caminhas onde descansamos.
Mas isso seria um jogo erótico de conveniência de sons.

Ainda não é possível caminhar sobre as estrelas.
Ouvem-se os gritos como ecos da distância e baixa-se o volume para a perturbação ceder.
Todos os dias há loucas tempestades de areia a apagar o rasto da morte.


Pensa-se em algo para o futuro sabendo de antemão que o futuro já foi e nada sobrou do regozijo.
Escuta-se a utopia como exemplo e como preparação.
A seguir virá o nada e por ser menos, não é.
Ainda assim, suspiramos de alívio pelos riscos que não corremos...

Beatriz Teresa

(post anterior)

terça-feira, junho 27, 2006

A dificuldade de ler (2- P/P2)

Ele bebeu o sangue e voltou a sair, não pela porta por onde entrara, mas por outra que não sei dizer qual devido ao estado de agonia em que fiquei quando ele bebeu o sangue com a mesma passividade de quem bebe um copo de água - ou uma cerveja sem álcool para não parecer tão prosaico.

Na rua chovia. E o que chovia não era sangue. Água, um bocado suja, verdadeira lama por vezes que deixou os carros imundos, mesmo o dele que agora, já sem sede, se sentou no renault quatro gtl e pegou num livro que não era nada um livro normal daqueles que servem para ler ou pelo menos para colocar estética e estrategicamente numa estante, embora, bem vistas as coisas, também pudesse servir para enfeitar uma sala.

O livro, dizia eu, era uma caixa e tinha dentro dela uma pistola de cano curvo, e dento da pistola uma munição e dentro da munição uma potência de morte. Só muito mais tarde soube porque é que o cano da pistola era curvo.

No acto do suicídio a posição do pulso é muito importante. Já se escreveram vários tratados sobre o assunto e todos eles – a maioria, obras de gente experiente – referem o pulso como o elemento chave de todas as histórias que podem acabar mal. Por um lado há o impulso, a lei informal de trazer o destino para o lado menos optimista. E não há outro lado como, por lapso, possa ter parecido.

(continua)

Torcato Matos

segunda-feira, junho 26, 2006

A dificuldade de ler (1)

Preâmbulo


Quando há no texto a impressão de não ter nada a dizer ficam dos dias passados ocasiões propícias a formas arredondadas de letras e números que se querem trágicos e arrebatados. Não é justo que todas as palavras sejam indiferentes ao sentido. Deixam-se cair como gotas de chuva sobre o chão preenchido de terra seca e tudo se esvai em cheiros de calor e perda. Na dispersão das letras formam-se ideias vagas sobre o vazio e tornam-se os pesos de consciência mais ligeiros e infinitos. Não há tragédia nenhuma na saída desfigurada do tempo. Teria sido mais claro se houvessem desígnios eficazes sobre a natureza da verdade.

Ele entrou pela porta do arco que está em frente ao lugar mais alto do pudor. Pediu, com voz um tom acima do exigido, que lhe dessem de beber um sangue qualquer. Não houve resposta, pelo menos que eu saiba, embora eu não faça parte desta história. Ele poderá ter ouvido qualquer coisa que nunca saberemos. Pelo menos eu nunca saberei, porque mesmo não fazendo parte desta história, tenho a minha opinião e se sei que naquela altura não houve resposta não será agora, esquecido o acontecimento, que ele irá dizer que ouviu o que quer que seja.

Mas confirmo, apesar de a minha confirmação poder não ser digna de confiança pelas razões já avançadas, que o vi beber um sangue qualquer. É bom que o diga aqui pois não teria interesse nenhum em falar deste assunto se não tivesse havido sangue. (continua)


Torcato Matos

sexta-feira, junho 23, 2006

Caminho

Gosto de estradas sinuosas; de não chegar nunca ao destino; de ficar pelo caminho e nunca ter de esperar pelo regresso.
Gosto, agora que o digo, e não sei o que diria ausente numa estrada sinuosa sem conseguir chegar ao destino.
Gosto por pensar que é bom gostar de coisas estranhas e querer que a estranheza se instale em qualquer lugar de mim, nem que seja à força.

Gosto de gostar, antes mesmo de pensar no que gosto.
Viro-me para o lado de onde vem o sol e espero que queime, que me dê uma indicação clara do lugar para onde vou e a que distância fica o norte.

Várias vezes me pergunto o que quero dizer deste gosto que tenho em gostar sem saber de quê e o que quero saber quando o sabor de um gosto me perturba o gosto de outro sabor que já não sabe como o sabor de outro gosto de que gostei.
Jogo, por isso, como o gosto e com a maneira de pensar o gosto.

Gosto de lugares onde ainda não fui; muito mais do que dos lugares onde já estive; e ainda mais do que dos lugares onde estou.
Já não é como era quando o que queria era chegar depressa ao lugar de ocaso.
Espero enquanto espero que a chegada se demore no caminho e aguardo o momento, que não ainda o momento final.
Sobre o tempo fica pendente a sua imperfeição; o seu andar levemente descaído para a indiferença; a bússola pousada no colo a pensar horizontes magnéticos de desejo.

Estamos parados agora no vale de lugar nenhum; ligeiramente à esquerda da fonte da sede eterna; próximos do oásis da desidratação; vigiados de perto pelos satélites da absoluta ausência.
Há setas a indicar o horizonte, erguidas sobre plataformas rotativas que giram com a penumbra e sigo com os olhos o risco altivo de um avião que regressa a casa.

Gosto de ficar por aqui pela parte norte do desejo.
Não monto a tenda porque isso já me pareceria uma concessão ao destino.
Fico à espera como se não esperasse, e com o tempo percebo que já não espero e monto novas teorias da existência, repelindo a fé e a intensidade dos sentidos, substituindo o arfar sagrado do cansaço por novas leituras da realidade, erguendo sempre a vista para uma verdade que já não está lá.

Não é forçoso que o mundo seja perfeito; não é forçoso que se mova; não é forçoso que seja como eu o quero às vezes, nessas vezes curtas em que eu o quero.
Gosto do que está antes, do que vem antes de o movimento ser excessivo, antes de a música ficar demasiado alta, antes de a bebida ter tornado os sentidos inoperantes e as cores serem todas uma, antes de ficar desiludido no lugar que procuro.
Sobre a marcha lenta que antecipa a rigorosa chegada à meta, adormeço as tempestades, arrumo os modelos reduzidos da minha intenção e preparo a partida para outra etapa em que os ventos tenham apagado os trilhos e enfeitiçado a paisagem de miragens.

Prólogo

quinta-feira, junho 22, 2006

A Samantha

Sabe-me bem esta ausência da Chris. Persiste um incómodo subterrâneo que tanto pode ter origem na preocupação com o seu paradeiro, como na angústia de a todo o momento ela regressar, como ainda na sensação de culpa pelo bem que a ausência me sabe. Os amigos dizem que ela não regressará antes do fim das férias, dando a entender benevolamente que ainda terei um enorme verão de paz. Não confio nos amigos quando têm o oblíquo propósito de me reconfortarem. Nestas coisas, como em outras, confio mais na minha intuição, apesar de apresentar um saldo profundamente negativo.

Sendo eu um céptico militante, concedi sempre à intuição um lugar marginal, e dei-lhe apenas as oportunidades em que não dispunha de métodos mais deterministas para me decidir. Hoje, uso a intuição numa forma desesperada: torna-se cada vez mais improvável que a intuição falhe outra vez!

Não foi a intuição que me levou a Samantha. Foi o desejo, foi a vontade, foi a força, o impulso interior, base da sobrevivência.

Não recordo a primeira vez que desejei Samantha. Nem serei capaz de recordar todas as vezes que a quis. Com algum esforço conseguiria lembrar todas as vez que foi minha, porque foram poucas... Mas é um esforço inglório. Samantha vive no seu próprio mundo, indiferente a mim e aos outros inúmeros que a desejam. Olha para cada um de nós com desdém, imune aos afectos, centrada apenas naquilo que considera valer a pena. Joga com o seu poder de sedução e sabe tornar-se a mais bela de todas, desviando aqueles que a querem dos seus caminhos seguros e banais. Pega no mais humilde de nós e, querendo ela, eleva-nos à figuração suprema da glória.

Corro o risco de que pensem que Samantha é uma mulher fácil - como é costume dizer-se das mulheres que não se fixam eternamente na exemplaridade de um macho. Seria lamentável porque Samantha é a mais difícil das mulheres. Dá-se, é certo, a quem ela quer. Mas estabelece para isso padrões de muita exigência e distribui os seus favores com o critério de uma deusa. É ela quem escolhe e decide. Invertem-se então as relações causa-efeito dizendo que o melhor é aquele que ela escolheu. Samantha define então o que é bem e mal e torna-se ainda mais desejada.

Amo Samantha desde que a vi pela primeira vez. Devo mesmo tê-la amado ainda antes, apenas pelas descrições que ouvi. Falava-se de Samantha - tal como se fala hoje - como o ser perfeito para fazer de um homem um deus e levar ao céu a cabeça coroada de um humilde. Amo Samantha ainda. Não com o impulso desregrado da juventude, nem com a pressa da inquietação, mas com a serenidade reflectida de dar sentido a cada dia.

Não é vergonha dizer que não fui, nem de perto nem de longe, o favorito de Samantha. Apesar do que cada um sente ser muito seu e exclusivo, e a mim ter Samantha dado bastas vezes o privilégio, sei ver de muitos outros a quem Samantha mais vezes e mais alto levou ao paraíso.

Continuo a amar Samantha. Persigo-a no dia a dia, já sem a imprudência de outrora e intuindo que só muito esporadicamente terei os seus favores. Mas também é verdade que antes parecia que só nela era possível sentir o mundo e hoje, aprendidos os truques que a natureza tem para nos moldar, sei que há mais e melhores lugares para viver.

Ivo Cação

(post anterior de Ivo Cação)

quarta-feira, junho 21, 2006

Bandeira

Não tenho que saber o lugar de onde vim.
Não tenho terra, não tenho a obrigação do regresso nem a justificação da sedentariedade.
Fico onde estou enquanto quero ou as circunstâncias são propícias.

Não tenho que saber quando cheguei.
Submeto-me aos relógios do instante e aí encontro abrigo
Parto logo a seguir ao amanhecer quando a luz já é firme.

Não tenho que dizer como me chamo.
Os sons que se propagam no ar trazem sempre um nome.
Não é aí, na denominação de origem, que seguro os meus mitos.

Não tenho que jurar fidelidade à evidência.
Procuro restos nos caminhos perdidos da invenção.
Faço o meu caminho pelos atalhos que tornam a certeza mais distante.

Não tenho que preocupar-me antecipadamente com a morte.
Voo todos os dias sobre penhascos e incandescências.
Flutuo placidamente em rios de lava e espanto-me com todo o vazio.

Não tenho que jogar às escondidas com o sentido.
Passo abertamente à frente do medo e defendo-me gritando.
Compro todos os dias o jornal para embrulhar e manter quentes os sonhos.

Não tenho que gemer os sofrimentos.
Quebro um elo de cada vez e fabrico a importância do desejo em golos doseados de líquido incolor.
Cubro o olhar com lágrimas para consumo interno.

Não tenho obrigação de acompanhar os tempos.
Faço o meu lugar como faço a barba pela manhã à procura do rosto que reconheço.
Subo um degrau de cada vez com a lentidão própria de ficar a saber como descê-lo.

Não tenho força para resistir ao vento forte.
Dobro-me inconstante à passagem da tempestade, ignorante dos objectivos supremos.
Uso o meu corpo para ser outra vez, outro lugar, outra coisa.

Não tenho que ter amor aos símbolos nem às divindades.
O meu cosmos é o maior e o menor de todos, e descreve-se a si próprio como lume herdado da natureza.
É vão discutir: importa apenas o lugar onde nasce a palavra.

Sísifo

segunda-feira, junho 19, 2006

Postnove

Como sabes, não adianta nada a submissão. Foi uma perda de tempo acreditar que as cedências de hoje poderiam ter compensações amanhã. Acreditar, como acontece nos jogos e nas batalhas, que um ligeiro recuo pode ser estratégico para a posterior vitória. A vida é um jogo, desde que não seja a nossa. Quando está em campo o sofrimento próprio, o cinismo enterra-se na sua inanidade.

Mas também sabes que não nos submetemos por estratégia. A inteligência, como o gozo, tem um horizonte temporal curto, sucumbe rapidamente ao sentimento, perdendo aí o confronto com a ilusão. Acreditar, como acontece no teatro e no comércio, que a simulação é uma táctica fecunda para obter do outro o benefício. A vida é um teatro, desde que não seja a nossa. A realidade coincide com aquilo que cada um sente.

Sabes que episodicamente consegui fugir da minha realidade. Cedi, fui ao encontro do que manifestava o teu desejo e a tua vontade. Ensaiei os modelos de destino que não subscrevia. E depois de uma cedência – depois de uma perda – aprendi que vem sempre outra e outra. Acreditar, como acontece nos sequestros e no dever, que há um resgate que compensa o valor do risco. A vida é uma prisão, desde que não seja a nossa. Do formato equívoco da vontade nasce o outro equívoco da liberdade.

Só muito mais tarde soube – e não sei se tu sabias - que com a experiência não aprendemos nada que antes não soubéssemos. Testamos a liberdade por descargo de consciência, para sentir que o tempo passa na direcção certa. Acreditar, como acontece nos laboratórios e no amor, que o acaso - ou Deus - pode ter um dado viciado a sortear números impossíveis. A vida tem um destino, desde que não seja a nossa. Não me interessa o que está escrito em nenhum livro que me nomeie.

Sei que não sabes que eu não sabia que não era possível.

Aibieme

quarta-feira, junho 14, 2006

Pérolas (VIII)

o fui ler muitas vezes mas ainda não o sei de cor.

terça-feira, junho 13, 2006

Vertigem

Fui avisado a tempo de que não deveria falar da verdade.
Disseram-me porquê e não esqueci, apesar de as razões serem absurdas e inqualificáveis.
É, portanto, com conhecimento de causa que minto.

Avisaram-me que não me aproximasse demasiado dos precipícios.
Que não olhasse o sol directamente nem me expusesse à fúria da tempestade.
Que não enfrentasse o mar nem o deserto sem instrumentos de navegação.
Que não me deslocasse para a beleza encantadora da neve sem me cobrir com agasalhos.

Há sempre alguém ao longo da estrada que me mostra no seu passado as feridas.
Dizem, com boas intenções, que devo aprender em vez de arriscar.
Há sempre alguém no içar incompleto da bandeira que diz saber do que fala.
Diz das dores que o corpo padeceu para encontrar o caminho de que se queixa e orgulha.

Eu oiço, por pensar que é possível que alguém saiba alguma coisa nova.
Tinham-me avisado que as palavras poderiam ser perigosas.
Tinham-me dito, quase em segredo, que constava não terem permanecido vivos os que tinham contactado com a verdade.

Hoje poderia ser, por tudo isto, uma pessoa avisada e consciente.
Pode dizer-se que se conjugaram os astros e as razões para que fosse um homem feliz.
Houve em todo o processo, em todo o andar da carruagem, sinais benignos e informações construtivas.

Hoje poderia estar aqui entretido a descrever as minhas vitórias e a queixar-me com o mesmo orgulho das derrotas.
Poderia estar aqui a enunciar conselhos e a mostrar caminhos.
Poderia estar a mostrar a voz da experiência e a zombar dos erros da ingratidão de cada um.

Mas a coisa correu bem.
Continuo a ser capaz de dizer que não percebo o que aconteceu.

Sísifo

Interesseiro

A mim interessa-me pouco o interesse. Interessa-me não me interessar por nada e ter com os outros interesses a relação calma e saudável de quem sobrevive. Porque não interessa nada a ninguém que eu tenha ou não tenha interesses. Num certo sentido é mesmo isso que me interessa. Que os interesses que tenho sejam tão pouco interessantes que, digamos assim, não haja interessados em interessar-se pelos mesmos interesses que eu. É nesse sentido que não tenho interesses. Claro que me interesso por coisas interessantes. Mas as coisas que considero interessantes não têm geralmente interesse nenhum. É por isso que quase sempre as outras pessoas acham desinteressantes os interesses que me interessam.
Poderia enumerar aqui uma série de coisas desinteressantes que me interessam muito particularmente. Mas como parto do princípio que não interessam a ninguém, não há interesse nenhum em divulgar de forma desinteressada os meus modestos interesses.
Não deixa de ser curiosa – ia dizer interessante – a ideia de considerar modestos os interesses particulares. Porque ao dizer modesto eu estava interessado em realçar o interesse que os modestos interesses têm. Interessa-me, portanto, que o que quer que eu diga dos meus interesses seja inferior ao interesse que deveras lhes atribuo. Por outro lado não me interessa rigorosamente nada que os meus interesses sejam muito particulares. Não é aí que vou buscar o seu interesse. Interessa-me sim que os meus interesses sejam mesmo interesses meus e não interesses que tomo emprestados dos interesses de outros apenas para que os meus interesses não sejam assim tão particulares. Interessa-me também que o interesse que as coisas que me interessam têm, seja um interesse bastante superior ao meramente interessante. Porque entre estar interessado em estar interessado e estar interessado em parecer interessado vai uma interessante diferença.
Se me interesso por alguma coisa - e seria interessante sabê-lo - e se esse interesse que sinto é um interesse muito particular - e desprezo por desinteressantes os interesses que não são particularmente particulares - então é interessante reconhecer - e cá está um interesse particular - que não é o interesse que me interessa mas o que há de interessante nas coisas que me interessam, mesmo que não interessem a mais ninguém.

Prólogo

domingo, junho 11, 2006

Efeméride

Parece haver uma boa razão para as religiões evitarem nomear o Deus que as define. Digo-o numa perspectiva científica, racionalista e razoável: acredito que há sempre uma causa para todo o efeito.
Em tempos, nas minhas investigações, explorei a hipótese de ser uma tentativa de evitar a banalização. Parecia-me que a sistemática enunciação de um Nome, ainda que divino, Lhe haveria de provocar um indesejado desgaste e consequentemente uma perda de valor de Mercado. Quando percebi que os valores de Mercado têm estranhos comportamentos retirei a hipótese: um Nome é muito mais valioso pelo nível de notoriedade do que pela qualidade percebida. O conceito de Bom Nome é pura retórica que não alimenta ninguém. Falem de mim, ainda que mal, mas falem.
Noutra fase acreditei – é inevitável o recurso à crença – que se omitia o Nome por respeito, por consideração pela Entidade cujo reconhecido mérito ultrapassava toda a contingência e toda a compreensão e deveria por isso, ser digno de permanente homenagem. Não foi difícil descartar esta hipótese através da simples observação da contabilidade das instituições. Enriquecer não é um direito mas um dever. O Mercado é o desejo de saciar todos os desejos.
Houve outras hipóteses irrisórias que nasceram e morreram sem mérito nem heroísmo, permanecendo a causa do efeito na sombra dos mitos. Se a ciência não sabe esqueçamos a ciência.
Sobrou, no entanto, a convicção de que a História tinha acumulado dados de experiência que conduziram ao tabu. Uma lei que não possa ser compreendida será imposta pelo medo. Ficou, por isso, para um não crente como eu, a crença de que o Nome não deve ser dito. Não é em vão que o tempo deixa Marcas. A omissão do Nome é uma marca da Evolução, como o oxigénio que respiramos; como a posição erecta do corpo; como a visão sobre a zona mais abundante do espectro solar; como o polegar oponível; como os nove meses de gestação...
É essa a razão porque omito os nomes. Não digo, não pronuncio os nomes de quem gosto. Evito os nomes das coisas. E daquilo que odeio tento nem pensar o nome. Ultimamente esforço-me por não memorizar os nomes que ouço. Os nomes das pessoas, os nomes das instituições, os nomes das empresas, os nomes das marcas, dos políticos, dos artistas, dos escritores, os títulos dos livros, das músicas, dos filmes.
A verdade é que agora não quero saber nenhum nome, nem apelido, nem alcunha, nem número de identificação...
Se eu dissesse o nome da coisa horrível de que estou a falar, estaria inadvertidamente a promovê-la e a aumentar o seu valor de Mercado.

Artur Torrado

sábado, junho 10, 2006

Pérolas (VII)

Para um jornalismo decente não há como a imprensa independente!

quinta-feira, junho 08, 2006

Cleptomania

Aqui não há nada de novo!

terça-feira, junho 06, 2006

Por um partido político para a defesa dos tumores

- D. Yolanda, chamei-a aqui para a informar que tem um tumor no cérebro.
- Oh! Doutor! E é grave?
- Como tudo na vida depende do ponto de vista.
- Então o Doutor quer dizer que é benigno!?
- Bom. Seria pouco ético estar a tecer considerações sobre a bondade do tumor. Como sabe devemos manter-nos equidistantes e preservar a nossa independência em relação a tudo o que possa constranger a correcção dos nossos procedimentos.
- Não entendo Doutor. A minha vida está em perigo?
- Eu não queria ser muito literal porque certamente, mais tarde ou mais cedo, serei prejudicado quando me citar fora do contexto em que estou a produzir estas afirmações.
- O Doutor preocupa-me...
- Por quem é, não precisa de se preocupar comigo, D. Yolanda. A sua qualidade de minha paciente atribuída aleatoriamente pelos computadores do serviço nacional de saúde, é para mim um ponto de honra uma vez que foram as virtudes do acaso que nos juntaram neste momento histórico.
- Comove-me a sua dedicação...
- Analisando a sua questão sobre a 'gravidade' do tumor no cérebro eu penso que deveríamos chegar a um acordo sobre o conceito de 'gravidade' que vamos, neste caso concreto, partilhar. O que é que significaria para si ser grave?
- Porra, Doutor! Quero saber se vou morrer com isto!
- ...
- Peço desculpa...
- Eu compreendo a sua exaltação. Não é todos os dias que nos dão assim notícias que nos tornam uma situação excepcional. Devo entender que se preocupa com a morte...
- Claro, Doutor. Sou jovem. Tinha um futuro à minha frente...
- Em primeiro lugar quero que perceba que não sou eu o responsável por você ter essa coisa dentro da cabeça.
- Sim, eu sei... ninguém é responsável.
- Gostaria que compreendesse que do meu ponto de vista muito pessoal o seu caso não é grave.
- Não?!
- Se você fosse uma doente minha de catálogo, daquelas que chegam à minha procura de maneira activa e empenhada e procuram os meus serviços personalizados, eu até consideraria o seu caso como uma grande sorte para mim.
- Oh, Doutor...
- Mas não foi assim. Não há em si uma vontade explícita de ser minha doente. Chegou a mim por acaso. Não é provável que se entregue confiadamente nas minhas mãos. Depois de mim irá a correr procurar uma segunda e uma terceira opinião até que algum dos meus doutos colegas consiga tocar na corda da sua sensibilidade e determinar a sua crença.
- Eu estou a confiar em si. Só quero saber o meu destino.
- A D. Yolanda não consegue perceber que está na presença de um profissional. Eu não sou um amador. Faço umas horas aqui no hospital mas a minha vida não acaba aqui. Eu não posso considerar o seu caso grave quando ele tem o potencial de aumentar a minha conta bancária. Mas percebo que para si pode ser grave porque vai fazer baixar a sua.
- ...
- Do ponto de vista social é mais ou menos indiferente, apesar de a palavra tumor ser muito complexa, difícil e dolorosa, tem conotações à esquerda, traz alguma revolução, provoca alguma complexificação da coisa social. Mesmo assim é pouco relevante.
- ...
- Já do ponto de vista biológico é uma coisa do domínio do bem. Os tumores são uma espécie minoritária apesar de terem algum relevo social. Antes não se dava conta deles, estavam dentro dos sistemas socialmente aceites. O tumor era uma causa natural de morte. O que não é o mesmo que morrer atropelado por um eléctrico, ou como a morte química ou bioquímica ou radioactiva.
- Acha então que eu vou morrer?!
- Além da questão discriminatória. A perturbação das espécies. Um tumor é um objecto que tem em vista a diversidade biológica e por isso tem que ser preservado. Nesta minha faceta de funcionário público não liberal não vou querer tratar disso. Mas no meu consultório tenho que velar para que a ciência progrida.
- Vou morrer...
- Os concidadãos vão muito solidariamente pagar para tratar o seu tumor. Um tumor é um propriedade pessoal e portanto não deveria ter-se a preocupação de responsabilizar a solidariedade social com o seu problema. Como seu concidadão também não estou minimamente interessado em participar, ainda que modestamente, na resolução de um problema que é seu. A não ser que quisesse que a tratasse particularmente. Sem recibo. Sem provas. Eu não me posso envolver numa situação que me ultrapassa. Eu poderia ter-me dedicado à política. Poderia ser um autarca. Aí sim, a minha função seria preocupar-me com os problemas dos cidadãos.
- Vou morrer...
- Como médico estou preocupado com as variantes que vão florindo da natureza. Não tenho estrutura de açambarcamento moral. Interessa-me muito o ponto de vista do tumor. Uma forma de vida que deveríamos adequadamente proteger. Como médico sinto que o tumor tem muito mais a dizer-me, é muito mais atraente, do que a pessoa que o transporta.
- Já não tenho esperança...
- A D. Yolanda há-de reparar que há milhares de pessoas preocupadas com a vida de pessoas como a senhora. Agora diga-me: e os tumores? Quem se preocupa com os tumores? Que culpa têm os tumores para serem rejeitados por todos sem lhe darem sequer a oportunidade de se defenderem?
- Eu morro...
- Haverá um dia, D. Yolanda, em que os tumores hão-de mostrar a sua força e a sua importância. As pessoas vão perceber que têm estado a ser egoístas, que remeteram os tumores para um gueto e lhes retiraram direitos. É uma questão de tempo. A biodiversidade dos tumores, a ecologia dos tumores, os tumores como minoria marginal à sociedade. Incompreendidos, rejeitados, sem direitos, ...
- Adeus, Doutor.
- Isso, vai-te embora louca intolerante! Nunca perceberás. Esta gente é tão limitada que não enxerga os verdadeiros valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Como é que há gente que consegue ser tão insensível com os pobres dos tumores...


Lino Centelha

(ocorreu-me este diálogo ao saber que se tinha formado na Holanda um partido para legalizar a pedofilia, a pornografia infantil e a zoofilia...)

sábado, junho 03, 2006

Pérolas (VI)

Este texto investe em várias frentes.

sexta-feira, junho 02, 2006

A Fhelícia

Voltei a casa. A Chris não está. Há muitos vestígios da sua presença mas não sei dizer há quanto tempo saiu. Não deixou nenhum recado.
Estou inquieto. Não sei que pensar desta ausência da Chris. Tinha-me preparado para chegar a casa e encontrá-la no sofá predilecto em frente à televisão, respirando pesadamente ao ritmo do zapping, e comentando as imagens com a voz arrastada e rouca de fumo. Há um efeito de estranheza quando uma ausência desejada se concretiza. Não sei da Chris, sei que não está, mas sinto-lhe uma presença próxima, como uma doença de que um medicamento apagou os sintomas por algum tempo.
No estendal da varanda há uma bandeira. Apercebi-me quando as costuras das pontas soltas bateram contra o vidro da janela. Pensei no patriotismo da Chris. No seu apego às pernas musculadas e aos abdominais dos rapazes que fazem da bola a sua profissão.
Não mudou muita coisa na minha ausência. Os lugares vazios continuam a ser os mesmos. Agora volto para o lugar vazio que é o meu e deixo de ser o sem-abrigo que realmente nunca fui. Perdi peso e ganhei olheiras com este tempo que errei pelas margens da cidade fugindo ao mesmo tempo da Chris e de mim próprio.
Agora que repousei e tenho a mente mais lúcida, ocorre-me o nome Fhelícia. Há dias, na rua ainda, tinha-me lembrado dela. Das suas formas, da sua habitual roupa espampanante, do seu aroma a violeta, da voz profunda e rouca, do rosto belo e estático em que a expressão permanecia inalterável, da solidez do andar, do cabelo longo e negro, do peito acolhedor e firme, da surpreendente força do seu abraço. Não me lembrei do nome. Terá sido por não me lembrar do nome que voltei para casa. Fiquei perturbado por não saber como chamar a um todo que me enchia a mente e que, por instantes, se tinha tornado tão real que parecia estar em condições de lhe tocar. Voltei a casa, penso agora, com a intenção de me lembrar de um nome cuja ausência me assustou.
Lembro-me agora do nome Fhelícia. Exactamente com a mesma nitidez com que lembrei as suas formas.
Fhelícia foi uma mulher de que fugi. Não da maneira que fujo de Chris pela infelicidade que me provoca. Fugi de Fhelícia quando descobri que nunca seria capaz de amá-la. Deixei-a, aumentando sistematicamente a distância que me separa dela e não olhando para trás a não ser para ter a certeza que havia tempo a passar. Fugi de Fhelícia numa época de fugas. Aproveitei para fugir de muitas coisas ao mesmo tempo incluindo este rosto que me tentava com paraísos impossíveis.
Não sou capaz de recordar com pormenor os primeiros tempos. A aproximação foi fácil como é fácil conciliar ingenuidades, mas nunca foi total. Havia sempre um mas, um excesso de promessas que faziam hesitar um pobre desconfiado. Durou alguns anos o idílio, demasiados, enfim, para o que hoje me parece uma decisão inevitável.
Fhelícia seguiu o seu caminho - muito maior que o meu - hoje é uma estrela, brilha e alimenta milhares de fantasias, multiplica-se na sua versatilidade de mulher que tudo consegue. Constrói o seu império e reconheço-lhe agora uma frieza que então me iludiu. Cheguei a temer que me faltasse alguma coisa que me tornava incapaz de me deixar encantar por ela.
Hoje sei que na rua, longe do abrigo, distante do equilíbrio de um nome, corre-se o risco de Fhelícia aparecer nos sonhos.


Ivo Cação

(post anterior de Ivo Cação)