domingo, setembro 17, 2006

Astro-terapia

Assim como há sempre uma primeira vez, também há uma última vez para todas as coisas. É uma lei da natureza e contra as leis da natureza não de pode fazer nada.

Comprei hoje o sol pela última vez. Por questões de sanidade mental. Isto é, pela mesma razão que já me fazia evitar a compra do expresso. Radioso fim, portanto.
Sei que vivo num país a duas velocidade extremas e percebo que isso torne as coisas complicadas para quem quer perceber o que se passa, admitindo que ainda há quem queira perceber o que se passa. Mas estava convencido que a tacanhice mental se poderia alimentar placidamente com a floresta de revistas manhosas que se acomodam à sombra da televisão e do burlesco 'jet set'. Pensava eu, ingenuamente, que o circuito de esgoto se esgotasse em si próprio, saltitante e alegre, entre as emissões televisivas mentecaptas, as mentes sopeiras que grudam os olhos no écran, as revistas que mantêm magicamente a literacia a zero, a elite nacional que faz bichas de porches para comprar apartamentos na torralta e toda a risível parafernália que alimenta os negócios políticos, quando vejo a degradação mercantil empoleirar-se com toda a pompa do abutre experimentado na pasmaceira cinzenta e conformista do quarto poder.
Durante um ano o sol vai brilhar em todo o seu esplendor. É fácil perceber como os homens da publicidade vão pegar num título tão cheio de potencial: o sol brilhará para todos nós; o sol quando nasce é para todos; o sol na eira e a chuva no nabal; o galo negro; mais brilhante que mil sóis; o rissol; sonasol líquido; javissol; magnatas aos sol; a roupa a lavar e o sol a corar; solteiro e bom rapaz; de sol a sol; o nascer do sol; o pôr do sol; sol tropical; insolação; solnado e sol nada; vamos aquecer o sol; lugar ao sol; comunhão solene; sol e toiros; sol e sombra; óculos de sol; o sol da meia-noite; sol de inverno; o lol e a sua; sol vermelho; duelo ao sol; deus sol; eclipse do sol; sol de pouca dura...
Mas daqui a um ano, depois de distribuir talheres, livros, revistas, suplementos, cêdês, dêvêdês, enciclopédias, naperons, bolachas integrais, t-shirts, balões, guarda-chuvas, etc., dá ao sol um solavanco que o dissolve no solvente universal da pasta de papel reciclado. Talvez haja ainda dinheiro - que há lugares neste país em crise onde há ainda muito dinheiro - para um novo fôlego com um novo director muito experiente, ou novos colunistas, ou um sorteio de ferraris, ou mais talheres e livros e shampôs, ou notícias mais ousadas, mais diferentes, mais quentes, mais decadentes, mais entorpecentes...
Virá portanto o sol semanário a ser independente antes do diabo do tempo expresso. Como se sabe é perigosa a exposição ao sol a certas horas e o uso de protector é aconselhado. De qualquer maneira o sol não é culpado: o cancro já se instalou há muito.

Artur Torrado

3 comentários:

Elipse disse...

Artur Torrado, que o Sol (O astro, o verdadeiro)te vá inspirando para estas e outras verdades. E oxalá não sejas torturado um dia destes por detrás das grades, por tanta lucidez.
Das leituras à televisão, passando pelas conversas e pelas farpelas, caminhamos para um mundo de gente leve, risonha e bem disposta, à sombra de um conjunto de "intelectuais" desgovernados que nos vão moldar até à anulação do sentido crítico.
E nós pagamos.

vague disse...

o bom da democracia é a diversidade :)

acabei de colocar um post sobre o assunto a falar em sentido oposto :)

'o sol' diz que não oferece brindes...

Artur Torrado disse...

Sol rima com lol e para o bem ou para o mal o expresso já me desencantou há muitos anos enquanto o sol só desencantou ontem. Olhando com cuidado vemos as mesmas pessoas fazerem no sol o mesmo pastelão que estavam a fazer antes no expresso. Vemos o risível arquitecto a continuar a sua escrita indigente. Diversidade seria haver muita gente a ler coisas diferentes e a discutir com opiniões próprias. Isto assim é as mesmas poucas pessoas que ainda lêem a comprarem mais um jornal para lerem um texto de um cronista de que já gostavam. E lêem mais do mesmo que já liam. Trocam grafismos antigos por grafismos modernaços. A isso chama-se mudar as moscas. E acima de tudo isto, pairando a larga altura das nossas pobres opiniões, há uma luta de galinácios ávidos de poder, de influência e de dinheiro que disputam, com oferta de talheres ou sem ela, o escasso mercado de leitores que se vai deixando alegremente esfolar. E é por essa ser uma guerra que não é minha que retiro os meus euros de cima da mesa verde. Não visto nenhuma das camisolas. E se peguei agora no assunto é porque estou farto deste modelo PRD, de pessoas que se juntam para reformar o que já havia com ar de anjos salvadores e depois...