segunda-feira, novembro 27, 2006

Inundação

Sobre o Cesariny falarei, se calhar, quando ele fizer cem anos. Ou talvez nem isso porque este sobre realismo de que se fala na morte é tão convencionado e tão pterodáctilo que eu à margem já vejo excesso de realismo em tudo. Sorrio do realismo e rio do surrealismo. Realmente. Sorriu o surrealista e riu-se o sul do realismo. Real ou republicano. Laico ou apenas um passo em frente. Não interessa. Não fica bem. Não fica nada bem na fotografia o efeito do esgar presidencial que se mostra depois da morte libertado (afinal quem era esse gajo?) enfim nas mãos dos que sabem o que querem. Herdeiros levantai-vos que há muito dinheiro aqui à volta. O espólio é pouco para tantos mas há-de arranjar-se um lugarzinho à mesa. Ainda a tempo do natal e para não ficares triste compra uma consola e joga até às tantas as muitas vidas que te restam. OK. Têm razão. Está tudo surrealista. A margem inundou a cidade com neblinas e nevoeiros matinais e outros que tais. Ficou tudo submerso mas ele não veio. O encoberto nem veio nem se veio nem teve o veio devaneio de saber o que fazer para não se perder no horizonte. Ano zero da era surrealista. Hoje ou ontem tanto faz. Faz-se um rótulo novo para pôr na garrafa e bebe-se na mesma. Nada é mais puro que o mundo novo que se constrói com uma teoria nova. Ainda não criou excrescências nem teias de aranha e nem sequer arranha a garganta ao falar do futuro que já não pertence adeus. Até ao meu regresso. Hei-de voltar uma noite. Todos perceberam. Desde o código daVinci já todos os códigos foram descodificados. Não há surrealimo que aguente tanta interpretação. Aguenta-te men, estamos todos em cima dos teus ombros. Construímos o depois antes do antes, o telhado antes da casa, a utopia antes do sonho. Um dia destes, quando tudo acabar e houver tempo, lançaremos a primeira pedra. Afinal estás triste porquê? Vão dar-te várias medalhas e um título póstumo. Não vais ter de que te queixar. Um edifício e uma instituição com o teu nome, olaré! E a poesia, a tua e a dos outros, que se foda. Porra, não era isto que eu queria ter dito. Mas já está, já está. Pegam agora no cão que ele já não morde. Ainda lhe fazem uma estátua sem ódio. Ninguém tem um espelho lá em casa. Os espelhos partem-se. Falta dinheiro para comprar espelhos. Ponham isso no orçamento de estado. Falta dinheiro para tudo. Dinheiro para comprar poetas. Dinheiro para comprar pintores. O dinheiro agora é todo para comprar criativos. Isso mesmo, ouviste bem, criativos. Desses que estão sempre a criar. Têm sorte os gajos. Compram coisas boas, vivem bem, tem planos de poupança reforma aos trinta anos e não ficam à espera que a segurança social vá à falência. Tudo está em tudo. Ouvi isto em qualquer lado e fiquei convencido. Não precisas de te preocupar. Nós ficamos bem entregues. A corja continua o seu caminho e há-de haver sempre uma catacumba disponível para os vivos que estão mortos ou para os mortos que estão vivos, já não sei dizer. Nasce-se à pressa, vive-se mal mas temos o consolo de ser bons quando morremos. Todos seremos melhores quando estivermos mortos. Percebo. Ficaram contentes por terem menos uma reforma para pagar.

Artur Torrado

4 comentários:

Hipatia disse...

Só os mortos são perfeitos. E já nem de dinheiro precisam...

Elipse disse...

toda a gente fica contente com menos uma reforma a pagar ... a perspectiva é realista. O que interessa é fazer muito aparato depois!
Surreal nem é o que escreveste, que tu sabes bem o que escreves; bem escrito está, claro, ou não viesse das tuas mãos. Surreal é a mediatização de tudo como se a vida tivesse de ser ume sequência de imagens e o lucro da sua exibição. Surreal? Talvez não.
É que é tão real a necessidade de homenagem ao homem depois de morto!
E rende!!!

Rosario Andrade disse...

Bom dia!
Brilhante texto, todo ele, acintoso e mordaz!
O pais que temos é tragicamente real!...
Bjicos!

Artur Torrado disse...

Hipatia - O problema é que cá na nossa terra só os mortos é que são perfeitos. Isto dá-me volta à cabeça porque sendo tão perfeitos os nosso mortos, e sendo tão elogiados todos os que morrem, cada um melhor que o outro, quem é que pôs esta terra no estado em que está?

Elipse - Nestes casos eu vejo sempre muitas pessoas a porem-se em cima do morto para ver se aparecem na televisão. É uma questão de elevação...

Rosário - Gostava de ter o espírito cáustico do poeta para ter as palavras certas para tanta hipocrisia.

Obrigado a todas pela paciência de me lerem.