domingo, novembro 19, 2006

Promessa

O sentido mata um texto. De madrugada. Porta aberta. Vejo as nuvens numa caneca de barro. Penso em ti. Gesto difícil. Quase a seguir há um acordo de princípio entre dois sonhos. Não fico a ver o que se passa. Por preguiça subo a escada até ao sótão. Poderia antes ter descido por uma questão de gravidade dos factos. Mas sabia a mar. E o outro lado da rua fica muito longe. Pesam os restos de ontem nos sacos de dormir. Não é branco nem tinto. Tanto faz que saibas como não por que é. Veio um cobrador buscar os últimos tostões. Não era legítimo. O pai fugira com outro barco mais flutuante. Era o que diziam as criadas à boca cheia de sopa. Durante a manhã choviam canivetes suíços. Abria-se o queijo que o diabo amassou no trânsito infernal. Doía. Pareciam esporas. Trotava-se na encosta. Vigiávamos os passos do conselho. Havia gritos também. Não percebo como foi. Disse que te amava. Era de madrugada. Subiam estrelas ainda. Não tinha onde pousar o pensamento. Foi em ti. Uma noite longa. A madeira gemia de medo. Pausa para respirar. Lá fora era como cá dentro. Um jeito de olhar a direito. Lugares pouco comuns. Sorrisos até. Um xaile a embrulhar os pés. Não percebi ou não persegui. Não sei. Havia ruídos suspeitos de te terem acordado. Eu tinha sono. Ainda. Faltava um sonho para acordar. Nem tinha que ser. Sei de vontades superiores. Como se fosse um tiro. Sem segundas intenções. Um pedaço fino de medo. Lotes para alugar. Não sou daqui. Nasci noutra aldeia. De roupa escura. Negros da fuligem. E do tempo. Ouvia-se também um rio. E um riso. Dizias que não era eu. Que não há sobras. Apenas sombras. Raio das palavras. A crepitarem. Impuras. Salgadas. Não tenho medo de morrer. A laje estava preparada. Haveria sol nesse dia. Os talheres traziam alimento à boca do mundo. Passei a mão pela testa. Vinha branca de cal. Logo a seguir segui-te. Tu não ias nem querias. Ossos de dinossauro. Dê Éne Á de mente. Destino retorcido. Tinha que dizer qualquer coisa. Calado. Mais sombras e menos dias. Não devia ter vindo hoje. A humidade minava a distância. Os saltos batiam na pedra. Não era medo. A fotografia. Preto no branco. Nocturno. Uma soma avultada. Um riso à beira rio. Mistério. Escondi-me. O cigarro queimava os vestígios. Um vulto de cinzas. Os pratos lavados a tilintar. Água a correr sem destino. Vesti-me sem pressa. A luz tardava. Um motor saía de casa. Adeus. Não creio. É um luxo viver aqui. Mais tarde se verá. Por justa causa. Sentia-me nu. A água ainda corria. Tu não sabes nada. O luxo da morte. A casa treme. Não faz mal que ninguém venha. Sinto que não interessa o que vem a seguir. É uma fila muito grande. Chegará para todos. Voltará. Acreditemos nos padrões. O mal repete a seguir ao mal. Como o bem. Ela não percebe o que eu digo. Não percebe nem acredita. É a mesma coisa. É leve a carga. O gesto solto. Poderia nevar. Amanhã faremos promessas. Sóbrios. Pura rotina. Dizer impossíveis. Soletrar. Beijo-te. Ou não. Há um horóscopo e um copo. Bebes dos dois. Eu sei pouco do futuro. Tu sabes tudo. Puxo o fio da camisola. Desfaz-se lentamente. Uma avó levara dias a tecer o meu gesto. Eu ignoro. Ela sabia. Ela dava. Não sei o que mudou. Já não sinto. Mas dói. É o desejo. A nata escolhida. A superfície. O gesto sem causa nem efeito. Vazio absoluto. Palavra pura. A pureza da morte. Escolheste o ponto mais alto. Sem subir. Sem saber. Amanhã faremos promessas. Prometo. O sentido mata um texto.

Artur Torrado

3 comentários:

Elipse disse...

... mas não lhe deste sentido, pois não?
Consigo ver as palavras vivas!

mfc disse...

Uma montanha russa vertiginosa, um carroussel louco...o rodopiar permanente... a vertigem a apoderar-se de nós!
"Amanhã faremos promessas. Sóbrios"!

Artur Torrado disse...

elipse - hoje li que há um tipo de palavras que nos qualificam mesmo que fujamos daquilo que significam. Falava-se de comportamento e de como não agir é ainda uma forma de acção. Provavelmente dizer que um texto não tem sentido é já dar-lhe um sentido...

mfc - é isso mesmo, uma dança. Palavras que estão em vez de uma dança que está em vez da vida real. Prometer que se promete já é uma promessa.