O princípio só se vê depois, quando a calma devastadora do tempo se ampara mansamente na memória. Voam, nessa altura, os pássaros sobre os ninhos rotineiros e aí aprendem a submissão ao passado. Ainda assim, encontra-se beleza na perspicácia insolente da intuição e acredita-se, através de variáveis ocultas, na bondade de um criador insuportável.
Vi, em tempos, horizontes melhores, mais apetecíveis. Tinha neles a esperança de que o fim não fosse logo a seguir à ilusão. Era tempo de construir e eu não sabia, porque a lava quente ainda queimava a superfície assombrada pelos exemplos ocultos. Não tinha medo nem método. Ingeria o acaso como se fosse alimento espiritual e subia às alturas apoiada em moléculas quimicamente belas. Saltava sobre o real porque a verdade era tão evidente como o riso que soltava impune no fim da noite, ao nascer do sol, antes de adormecer.
O princípio é o que se marca na memória como sagrado. Nem se sabe o que se sabe ou se o que se sabe aconteceu. É princípio por necessidade; para marcar o tempo e o espaço; para relativizar e proteger do desconhecido. É esta a prática absurda do tempo: esquecer. Porque a prática absurda do homem é lembrar.
Quis, lembro-me que quis, guardar de cada instante da vida uma marca que provasse que eu tinha estado lá. Quis vestígios para proteger a memória da sua volubilidade. Sinais que soubessem em cada nova leitura localizar as formas transversais da certeza. Documentos capazes de reconstruir na sua dimensão própria o esvair anárquico dos sentidos.
O princípio percebe-se tarde demais. Cai sobre nós pelo temor do seu oposto e conserva-se como talismã da oposição ao caos. O princípio chega à noite, quando a escuridão cega as vozes que deixaram de saber, e bate levemente na janela fechada. Pergunta, com um sotaque desconhecido, a causa da desgraça e o feitio arrepiado dos sonhos. Parece mesmo interessado em saber o que se passou entretanto.
Não é verdade. Ele não quer saber o que me aconteceu. Procura apenas a sua glória. Procura outra vez o naco de carne apodrecida que traduz em manjar. Ele não sabe que deixei no meu caminho pedaços de luz que não é capaz de ver. Torço a razão das coisas e penso-as para meu gozo. Jogo. E é com o jogo que ultrapasso o tempo e cumpro a missão que não me deram.
Beatriz Teresa
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1 comentário:
Que texto, parece que voa.
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