quarta-feira, agosto 30, 2006

Conselhos sensatos

Ao ler no límpido e sereno blogue "Por outro lado" o poema de Pablo Neruda, "Morre lentamente", ao que percebi muito conhecido, identifiquei não sei se definitivamente, o que me incomoda em determinada "poesia" que, como o "IF" de Rudyard Kipling, pretende ser um guia de comportamentos, cheio de boas intenções e espírito construtivo.
E o momento exacto em que se fez luz foi no verso "fugir dos conselhos sensatos". Que é este poema senão um conjunto de conselhos sensatos? Que faz Pablo Neruda neste poema senão indicar-nos aquilo que ele considera o caminho certo?
Ora o que eu estou à espera na poesia, e só assim consigo chamar-lhe poesia, é que não me dê conselhos, porque se o fizer vou considerá-los conselhos sensatos e fugir deles a sete pés.
O que eu estou à espera num poema é que não use nem a minha lógica, nem lógica nenhuma, para me dizer alguma coisa que eu tenha suficiente dificuldade em entender por ser nova para a minha interpretação corriqueira dos dias e ter a animação mental ou emocional adequada a corromper-me sem cheirar a chá de tília.
O que eu estou à espera num poema é que esteja lá outra pessoa que não tem a veleidade de querer pensar em mim e muito menos por mim.
Estou à espera que o poema seja um sítio selvagem onde talvez eu possa perder-me ou não. Um sítio em que até posso ter medo de entrar, não por ser pouco recomendável, mas porque me desafia nas minhas seguranças e nos meus instintos. E fujo logo que me acenam com um lenço branco.
Mas não estou à espera, e já vi que me aborreço, que o poeta tenha a intenção de me formar, ainda que use um discurso potencialmente subversivo e anime o texto derrubando com serenidade os lugares comuns.
Não estou à espera que o poeta saiba mais do que eu, embora eu saiba que ele sabe mais do que eu se for poeta.
Um poema assim, a ser poema, é uma oração, uma lista de projectos, o outline da mudança industrial. Ou um guia para escuteiros. Ou um decálogo para substituir outros decálogos tornando a vida uma revisão periódica de regras e de conselhos sensatos.
É um texto bonito e simpático, mais não seja porque casca na televisão. Mas não é um poema. Não será por isto que Pablo Neruda é poeta.

Ikivuku

1 comentário:

addiragram disse...

a poética só poderá nascer da ordem do emocional, em que as palavras renascem num sentido nunca antes pensado ,nunca antes alinhado, como acordes numa dança inédita...