quarta-feira, agosto 16, 2006

A dificuldade de ler (42)

- É uma boa combinação. Pelo menos parece-me uma boa combinação.
- O quê? O que é uma boa combinação?
- Os nossos nomes. O meu e o seu. Guilherme e Verónica. Soa a heróis de uma ópera. O Lher combina com o Ver, o Gui com o Ni.
- És engraçado Guilherme. Onde é que estão os teus piercingsI?

- Ah! Os meus piercings. Pois. Podia dizer-lhe que não estão à vista. Talvez até fosse uma boa estratégia. Não sei bem para quê. Desculpe. Um descafeínado morno com adoçante. E para si Verónica?
- Um café duplo em chávena escaldada.
Durante alguns minutos faz-se silêncio (temos de descontar neste silêncio o ruído de cadeiras a arrastar, a máquina a moer o grão de café, o ruído subliminar do ar-condicionado e dos frigoríficos, as chávenas e os pires a serem empilhados com violência, uma criança a berrar, muitos adultos a tentarem falar mais alto uns que os outros, o trivial portanto) e em três ocasiões Verónica e Guilherme esboçam em simultâneo uma primeira sílaba que é interrompida para dar a vez ao outro. Na quarta tentativa que ia ser ganha por Guilherme chegou à mesa a empregada que colocou com estudada delicadeza o pedido trocado na frente de cada um deles.
- Desculpe, mas o café duplo é para a senhora...
- Eu sei, foi ela que pediu!

- Então porque não o pôs do meu lado em vez do descafeínado que deve também saber que foi o cavalheiro que pediu?
- Faço sempre isso. Troco sempre os pedidos dos clientes.
- Troca?
- É um método de os pôr a conversar. Dá resultado. A maioria dos clientes chega aqui num elevado estado de tensão. Entram broncos e saem brutos. Se lhes troco os pedidos, mal me afasto já estão a conversar. Mesmo que comecem por falar mal de mim e do serviço e tal, descongelam a conversa e a seguir nunca mais se calam. Pessoas complicadas, sabem. Muito complicadas. Precisam de assuntos comezinhos para desencalhar. São fenómenos físicos perfeitamente naturais que acontecem com toda a espécie de matéria. Agora tenho que ir trocar pratos para outras mesas.
- Simpática.
- Atrevida!

Também desta vez houve simultaneidade nas palavras de Guilherme e Verónica e a ordem que escolhi é perfeitamente arbitrária ou só não é arbitrária na medida em que nada do que fazemos se pode considerar nem perfeito, nem arbitrário. Achei mais convincente considerar o simpática de Guilherme anterior ao atrevida de Verónica por me parecer que Guilherme não teria a deselegante ousadia de considerar a empregada simpática depois de Verónica a ter considerado atrevida.
(continua)

Torcato Matos

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