quarta-feira, agosto 23, 2006

A dificuldade de ler (44)

- Depois fiquei preocupado com a minha mensagem que não era bem a minha mensagem porque foi enviada com o propósito de confundir e tendo sido entregue em lugar impróprio tinha subitamente ganhado uma dimensão que me transcendia. Não é que se tivesse seguido o traçado inicialmente preconizado eu tivesse alguma espécie de plano lógico que conduzisse a alguma solução prática. Não. Eu sabia que uma vez recebida a mensagem pela destinatária eu teria que seguir de alguma maneira o acaso e arrancar de mim uma improvisação que não poderia em caso algum preparar. Mas a repentina modificação de trajectória fez-me pensar, e desculpe esta ingenuidade, que o carácter casuístico tinha começado um degrau abaixo do meu esboço de plano. Soube, num instante - e estas coisas das telecomunicações são hoje mecanismos mais rápidos que o pensamento - que outra pessoa tinha recebido a minha mensagem e poderia ter com ela uma reacção que de alguma forma me removesse do caminho liso que me estava a molestar. Eu não sabia, como há-de acreditar, quem era o receptor da minha mensagem. Era uma mensagem numa garrafa que eu atirara para fora da minha ilha por acidente. Hesitei. Hesitei bastante antes de, há pouco, enviar a segunda mensagem. Havia uma probabilidade muito pequena de a pessoa que recebera a garrafa ter lido a mensagem e estar no local que eu queria. Não era impossível mas muito improvável. Eu não queria dar esta imagem de ingenuidade. Ou mais, esta imagem de superstição. Mas tenho que dizer que estava à espera que a minha namorada, ou ex-namorada, ainda não sei, por uma manobra milagrosa do destino, aparecesse no momento em que a Verónica apareceu.
- Apareci eu em vez da tua namorada. Não é preciso muito para perceber isso. Mas como é que ela poderia aparecer aqui se eu é que recebi a mensagem? E voltaste a enviar a segunda mensagem também para mim...
- Eu sei. Eu sei desse grau de impossibilidade. A Verónica não está a seguir o meu raciocínio. Eu sabia que havia outra pessoa. Mas não sabia quem era essa pessoa. Não sabia se essa pessoa tinha ligado alguma importância à minha mensagem. Não sabia nada, Verónica! E esse é o estado mais angustiante que se pode viver. Havia sempre a hipótese de ser alguém com um fio diferente para a narrativa.
- E o que é que eu sabia? Que é que eu faço aqui?
- O seu ponto de vista é diferente. É por isso que apesar de não saber nada de si tenho que começar por convence-la da bondade dos meus propósitos.
- Já percebi a bondade dos teus propósitos. Só não percebo porque persistes no erro. Se te enganaste uma vez, porque queres prolongar o engano no espaço-tempo? Eu não sou a tua namorada. Ponto final. Tomamos a bica e adeus.
- Verónica, eu não tenho a certeza que não seja a minha namorada... ou ex-namorada, ainda não sei...
(continua)

Torcato Matos

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