quarta-feira, agosto 02, 2006

A dificuldade de ler (32)

Os acontecimentos precipitaram-se sem que Franz tivesse oportunidade de contrariar a ordem pouco natural que as coisas pareciam procurar quando estavam à mercê da ambição e da estratégia comercial. Tinha preparado aquela equipa com um empenho que lhe custara dois casamentos e pensão de alimentos para sete vidas que se estendiam entre os três e o dezassete anos; vários anos sem tempo para férias nem para ir à Escócia natal; dores periódicas de coluna e miopia galopante; preocupações diárias; milhares de relatórios; anos inteiros de reuniões e incontáveis serões de formação para egoístas preguiçosos ansiosos por ser rapidamente ricos... Uma vida deitada fora através da dedicação a uma causa que agora era posta em causa por uns galarós acabados de sair de uma escola profissional cheia de inteligência emocional e vazia de preconceitos, mesmo daqueles preconceitos que são essenciais para uma vida minimamente digna. Para Franz parecia o fim. O fim dele e o fim do mundo que são duas coisas inseparáveis e estritamente relacionadas.

O chefe de Franz, cujo nome não me ocorre agora, adquirira com o andar dos anos uma sabedoria de que não tinha hipótese de partilhar, pelo menos entre aqueles que já tinham ganho o hábito de o considerar louco, senão os míseros efeitos especiais que a tradição e o mito impõem. Também ele tinha penado para se tornar, naquela empresa, o chefe dos chefes de vendas, e esse lugar, ambicionado por seis em cada dez dos seus colegas – segundo os censos de dois mil e três, potenciava a inveja, a intolerância e um espírito selvagem que parecia vir directamente dos primórdios da evolução. A sabedoria do chefe de Franz, resumia-a o próprio a uma frase: não emitir mais do que uma frase com significado durante cada cigarro. Tal postura económica permitia que com um cigarro na mão se criasse a expectativa de uma reflexão muito profunda que seria linearmente seguida por um aforismo que mesmo que não fosse aforismo haveria de se tornar em tal. Porque a sabedoria do chefe de Franz era coroada por um corolário que se pode resumir a nada acontecer no intervalo entre cada dois cigarros.

O médico da empresa, anti-tabagista convicto – ou pelo menos tão convicto quanto é possível a um profissional ser contra os benefícios pessoais da sua própria arte – ruminava razões científicas que explicassem a interacção do dióxido de carbono ou do alcatrão ou da nicotina, com o peculiar cérebro do chefe de Franz e a descontinuidade mental que o caracterizava.

(continua)

Torcato Matos

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