sexta-feira, agosto 25, 2006

A dificuldade de ler (45)

- Nem tudo o que parece é, Verónica. Nada do que parece é. Não sei. Não tenho a certeza. A Verónica pode saber mais do que eu. Embora ao mesmo tempo não me pareça. Não faça essa cara, eu não estou louco. Pelo menos não estou muito louco.
- Esta é a minha cara. Estou a ouvir-te. Faz um pouco de luz na minha mente. Diz-me em que lugar estou neste momento. E onde é que deveria estar.
- Não se impaciente. Vou tentar - não sei se conseguirei - proceder como se a Verónica não soubesse de nada. Porque isso até me parece verosímil. Em termos lógicos é a única coisa que é possível. Mas incomodam-me as coincidências. Incomoda-me não ter previsto esta situação. Parece que a realidade tem sempre um trunfo na manga.
- Tem de certeza. A realidade é sempre outra coisa.
- Acredita que eu nunca a tinha visto até hoje?
- Acredito. Faz sentido. Eu também nunca te tinha visto. E felizmente estou a ver-te aqui. em público, no meio de uma multidão, porque se estivesse sozinha contigo num outro lugar estaria assustada e preocupada.
- Não faço mal a uma mosca...
- Também acredito. Mas o teu discurso é demasiado misterioso para o meu gosto. Não é misterioso, é embrulhado. Que eu até gosto de mistérios...
- A minha namorada é um texto.
- ...

- Quero dizer que só a conheço por palavras que trocámos em conversas electrónicas. Namoramos através da internet e dos telemóveis. É na base do texto que passamos os nosso sentimentos. Nunca a vi. Não sei como é, como se veste, se é alta ou baixa, gorda ou magra. Não sei a que cheira, que cor tem, que idade tem ou aparenta. Não sei como se chama. Não lhe conheço o tom de voz. Falei com ela ao telefone, a meu pedido, mas do lado dela só chegou o som de uma respiração pesada e lenta. Sei de coisas que sente e que lê e que vê e que ouve e que toca e que teme e que deseja. E não sei nada. Ela sabe mais de mim porque eu fui dizendo como era. E ouviu-me. Sabe pelo menos como me vejo. Eu não sei como ela se vê. Não sei vê-la, nem sonhá-la, e porque a sonho os meus sonhos são fantasmas. Depois de algum tempo a insistir com ela para nos vermos, disse-lhe, há duas semanas, que não valia a pena continuarmos se fosse assim. E desde então não tive nem mais uma palavra dela. Nem uma. Não me responde ao correio electrónico, nem às mensagens por telemóvel, nem aparece na internet. Perdi-lhe o rasto. Tenho uma namorada, que já não tenho, com que sonho e de cujas palavras gosto, mas que não tem forma, nem existência, para além das palavras que lhe li. E agora que nem as palavras me dá, esta paixão deixou de ter objecto, está perdida no vazio, agora sem imagem nem palavras. Volto às palavras velhas que arquivei e vou quase sabendo de cor, e sinto que amo um espaço vazio, um lugar em que apenas a ausência está presente.
(continua)

Torcato Matos

Sem comentários: