segunda-feira, agosto 28, 2006

A dificuldade de ler (47)

- Que mal tinha para si, Verónica, ser você a mulher que eu amo?
- Que mal tinha?!
- Sim, repare, chego ao pé de si já completamente apaixonado, não precisa de fazer nada para conseguir o meu afecto, está tudo pronto, as partes difíceis da história, a necessidade de sedução, o encantamento, a dúvida sobre o interesse do outro, a pureza dos sentimentos, a absoluta gratuitidade da devoção, o envolvimento hormonal.
- Não estou à procura de namorado nem de paixão. Neste momento quero lutar contra o governo.
- Eu lutaria do seu lado, seria o mais feroz dos adversários do governo, por amor a si.
- Estás-me a propor um namorado pronto-a-vestir?!
- Estou a mostrar-lhe que tenho uma disponibilidade afectiva à procura de objecto. Sem a Verónica sou nada.
- Calma aí! Há uma hora nem sabias que eu existia, pá!
- Desculpe, digo a Verónica como diria outra mulher que estivesse aqui comigo.
- Ao dizeres isso não sentes que estás a colocar-me num plano muito pouco relevante?
- Estou a ser verdadeiro. Estou a dizer o que sinto. Tenho uma paixão deslocalizada e procuro um centro, uma imagem para a minha devoção.
- Não me estou a imaginar num amor pré-fabricado. Não é nada de pessoal contra ti. É o arrepio de entrar numa história que não é minha. Colher frutos que não semeei. Não! É demasiado aberrante. Suponho que não te será difícil encontrar alguém disponível, mas aconselho-te a mudares de método e de discurso.
- É angustiante esta situação. A Verónica não está a conseguir perceber a generosidade da minha oferta.
- Nem tu estás a perceber o que isso tem de humilhante. Tens um problema, por muito aberrante que seja é um problema, e queres alguém que to resolva. É apenas isso.
- Podemos ver este nosso encontro por uma perspectiva de acaso. Calhou-lhe a si receber a minha mensagem.
- Acho que foi azar...
- Do meu ponto de vista, que queria partilhar consigo, o acaso trouxe-a até mim, como se tivéssemos uma missão a cumprir, definida por instâncias superiores.
- Não me faças rir, Guilherme! As instâncias superiores não são o meu forte. Geralmente fazem-me subir a mostarda ao nariz.
(continua)

Torcato Matos