A noite encontrou Verónica e Guilherme caminhando silenciosos à beira Tejo, cada um procurando resolver de maneira tão prática quanto possível o burocrático enigma da existência. Não há qualquer possibilidade de sabermos o que pensavam, e não é aceitável que sobre isso se especule perante seres que são, eles próprios, incapazes de saberem o que querem ou quererem o que sabem. Poderíamos sem remorsos deixá-los ir até que dessem a mão ou se beijassem ou, inadvertidamente ou de propósito, um deles atirasse o outro ao rio e lavasse daí as mãos. Poderíamos também deixá-los por ora e voltar a encontrá-los mais tarde num capítulo em que a acção deles tivesse necessidade. Há sempre muitas hipóteses para uma história. Mas como é de lei que este texto se constitua documento sobre as coisas que efectivamente se passaram, passamos para o dia seguinte que, como já vimos, traz juntamente com a aurora, a frescura das notícias e a boa-vontade das consciências.
Às dez da manhã dava entrada na esquadra da polícia de Belém a seguinte participação:
"Eu abaixo assinado Arsénio Dias Guilherme Nêutico, filho de Laurinda Dias e Hélio Guilherme Nêutico, nascido a 25 de Abril de 1974, na freguesia de Cabanelas, concelho de Vimioso, distrito de Castelo Branco, venho, por este meio, participar às autoridades competentes, ter sido vítima de um assalto de consequências ainda difíceis de avaliar para a minha integridade física, química, moral e emocional. Os factos a que se refere a minha queixa resultaram num conjunto de actos falhados que me colocaram em cerca de sete meses na situação de dependência emocional de palavras de proveniência não identificada. Apresento por isso a minha queixa contra incertos de quem apenas tenho um número de telemóvel e um endereço de correio electrónico. Suponho tratar-se de uma mulher com elevado nível cultural e intelectual, com escrita elegante e assertiva, convicta das suas opiniões, conhecedora da mente humana, atenta, perspicaz, informada e de uma inteligência extremamente cativante. Perigosa, portanto.
Passo a enumerar os artigos de cuja falta já posso dar conhecimento às excelentíssimas autoridades: 1 - o sono; 2 - o amor-próprio; 3 - a consciência; 4 - o desejo; 5 - a realidade; 6 - a certeza; 7 - o medo; 8 - o apetite; 9 - o emprego; 10 - a ideologia; 11 - o gosto; 12 - a vergonha; 13 - a identidade; 14 - o prazer; 15 - o sonho; 16 - a paciência; 17 - a integridade; 18 - o pudor; 19 - a alegria; 20 - a fé; 21 - a paz; 22 - os amigos. Poderão existir outros de cuja falta ainda não me apercebi devido à extrema confusão em que tudo ficou e por não haver um inventário actualizado de bens que possa ser confrontado com a actual situação.
Rogo o urgente empenho na resolução deste caso. (assinatura legível)".
(continua)
Torcato Matos
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