quinta-feira, agosto 10, 2006

A dificuldade de ler (38)

- Você não sabe tudo sobre mim. Só sabe o que eu deixei que soubesse.
- Engana-se. Eu sei tudo sobre si. E por isso sei mais sobre si do que você.
- Então a sua teoria está errada porque mesmo sabendo tudo não tem poder sobre mim.
- Ó Franz, eu sou um homem pacífico. O poder não me interessa. O poder é um mecanismo que apenas interessa a quem tem carências de diversa ordem. Não é o meu caso. Não passo a vida a comparar-me com os outros. Num mundo são, a avidez de poder seria um sintoma passível de internamento compulsivo. É o primeiro dos sintomas do sentimento de inferioridade. Só quem não se sente bem na sua pele é que precisa da pele dos outros e de mostrar aos outros que a sua pele é de melhor qualidade.
- Lamento dizer-lhe, Weissmuller, mas o seu asilo de ávidos de poder haveria de ter uma dimensão considerável. Quem sabe se não é isso mesmo que já está a acontecer sem que nos demos conta: vivemos num asilo de ávidos de poder! Que quer de mim? Porque tenta seduzir-me com essa conversa?
- Gostaria muito de lhe dar uma razão prática, Franz. Mas existem factores que ultrapassam o meu gosto particular. E neste caso estou aqui como médico de trabalho de uma empresa que compete no mercado internacional, uma empresa que precisa de comer outras para não ser comida. E nesta selva a lei é a mesma de todas as selvas. A mesma lei que regeu a evolução, eliminando os mais fracos, que é como quem diz, os que não se conseguem adaptar, os que não estão à altura do que o momento exige.
- Quer dizer-me que eu vou ser eliminado? Vai mandar-me para a câmara de gás?
- Como já lhe disse, não tenho poder. A minha posição de médico de trabalho é, digamos assim, adjacente aos mecanismos de poder. O mais que eu faço é dar pareceres. Digo o que penso depois de analisar tecnicamente as situações, mas em caso algum tomo decisões fora do estrito campo do meu foro pessoal.
- As suas opiniões têm peso. Não há ninguém nesta empresa que não tenha já sentido a força das suas opiniões. Para o bem e para o mal.
- É um exagerado, Franz. Opiniões temos todos. Os meus pareceres são fundamentados, não são emissões de emoção. Se ler os dossieres verificará o escrúpulo do meu critério.
- Qual é então o seu 'parecer' a meu respeito? Vai puxar-me para cima ou para baixo?
- Franz, você sabe, e aí tão bem como eu, que nesta empresa atingiu o seu nível de incompetência. Há anos que não é promovido porque o seu sector deixou de ter crescimento. Como sabe, isso é mau para a saúde da empresa.
(continua)
Torcato Matos

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