domingo, agosto 20, 2006

A dificuldade de ler (43)

- É verdade, não tenho piercings. Nunca tive. Não gosto.
- Eu também só vinha à manifestação por ser contra o governo. Cada um manda no seu corpo e pode pôr os piercings que quiser e onde quiser.

- A minha mensagem foi para o seu telefone por engano.
- Por engano?
- Sim, enganei-me num algarismo. O seu telefone tem um algarismo de diferença do telefone da minha namorada. Ou ex-namorada. Ainda não sei bem.
- Então eu entro nesta história por causa de um algarismo trocado?! É isso que me leva para dentro da tua história?
- Os números são importantes. Eu acho que os números são importantes. Mas eu posso dizer o mesmo: por um algarismo trocado entrei na sua história.
- Falta-te dizer, para o teu caso ser perfeito, que tudo é relativo...
- Não iria tão longe. Sou uma pessoa simples, Verónica, apesar de ter um nome complicado.
- O teu nome não é complicado... mas tu não pareces nada simples... e eu estou aqui a tomar um café quando o meu objectivo era participar de uma manifestação contra as abjectas políticas do governo.
- ...
- Mas se te enganaste no número porque é que estamos aqui? O que é este prolongamento de uma troca de algarismos? Confesso que não percebo. O lapso aconteceu e deveria ter terminado, não deveríamos estar aqui. Que continuação é esta?
- Tenho de lhe confessar, Verónica, que também não estou em condições de sustentar teoricamente o facto de estarmos aqui a confessar. O lapso foi meu. Ontem enviei a mensagem para a minha namorada, ou ex-namorada, ainda não sei, e percebi, logo no momento a seguir que tinha enviado a mensagem para outro número. Tinha sido difícil tomar a decisão de enviar a mensagem para a minha namorada, ou ex-namorada, ainda não sei, porque estava a empurrar-me para uma ficção que não é minha e não tenho jeito para ficções, e por isso tinha recorrido a um suplemento de coragem para enviar uma mensagem de um número que não era o meu. Depois de perceber que me tinha enganado já não tive mais coragem para repetir o gesto. O meu corpo traíra-me fazendo-me escrever um digito errado. Suponho que o corpo faz o que quer. Reconheço que eu poderia ser o tipo de pessoa que perante a adversidade faz tudo para que prevaleça a sua vontade. Poderia. Não sei como se faz mas reconheço que poderia ser dessa maneira e talvez tivesse vantagens. Mas neste caso não fui capaz de voltar a enviar a mensagem para o número que de facto me interessava. Digamos que o meu plano fora interrompido por um erro de operação e era necessário voltar a repensar toda a questão.
(continua)

Torcato Matos

1 comentário:

Maria Arvore disse...

Os números são tão importantes que o digitar mal um deles garantiu 1 + 1 em vez um provável, não sei bem, apenas um.