Nenhum dos numerosos aglomerados que se acoitavam nas escassas sombras do Rossio, parecia a Verónica concordar com a sua expectativa de um grupo de militantes pró-piercings e, à medida que as seis da tarde se aproximavam, instalava-se na sua mente literal a dúvida sobre a veracidade da mensagem que recebera. O que a frustrava, digamos assim, não era a hipótese de ter sido enganada, mas a desilusão de não se manifestar abertamente contra o governo integrada num número suficientemente numeroso para não sentir que estava a gritar sozinha.
Cogitava em juntar-se a outro grupo qualquer que lhe parecesse adequadamente anti-governo quando tocou, no saco que trazia a tiracolo, a Cavalgada das Valquírias, indicadora de nova mensagem. "Tá pur aki alguém prá manifa dos piercings. Todus á porta da Suissa." O sorriso de Verónica abriu-se. Afinal ia haver protesto.
À porta da pastelaria com ar de quem procurava alguém, apenas estava um barbudo de óculos muito grossos e roupa demasiado pesada para o calor que estava. Vendo o ar inquiridor de Verónica perguntou-lhe se vinha para a manifestação.
- Venho para a manifestação contra o governo. Não têm nada que proibir os piercings.
- Ainda bem que a encontro.
- A mim?
- Tomamos um café?
- Então e não esperamos pelos outros?
- Não há outros. Posso saber o seu nome? Eu chamo-me Guilherme.
- Verónica, muito prazer. Mas que história é essa?
Guilherme entra na Suissa à procura de uma mesa e tem sorte de ver uma mesa a vagar, mas tem o azar de, na pressa de não perder o lugar, derrubar com a mochila, um galão a ferver para cima do colo de uma velhinha. Teve sorte porque a velhinha tinha a mala no colo e a maior parte do líquido resvalou para o chão de maneira inofensiva. Teve algum azar porque a velhinha não aceitou as desculpas sem interpor um conjunto de denominações de origem a propósito de Guilherme que não seria decoroso para nós e para os intervenientes pôr aqui preto no branco.
Sentou-se finalmente Guilherme e à sua frente Verónica ainda irrecuperável da portentosa cena de acção a que não estava habituada devido a uma inabilidade visceral para processar a lactose.
- Tiveste azar Guilherme.
- Não foi mal. Costuma ser pior. Tenho um fundo de maneio para estas situações. Já me aconselharam a fazer um seguro. Mas tenho resistido porque se as coisas correm mal com o seguro fico sem saída. Assim apenas vão acontecendo acidentes de pequena monta.
(continua)
Torcato Matos
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