domingo, agosto 06, 2006

A dificuldade de ler (35)

"Franz é um praticante entusiástico do suicídio”, disse o chefe de Franz ao minuto dezassete da reunião matinal de chefes de vendas. A minha fonte garantiu a hora exacta, o nome de Franz e o termo suicídio. E garantiu também que o sentido da frase era este. Mas garantiu ainda que não se tratava de uma transcrição literal porque tinha ouvido pelo menos uma outra versão que dizia: "Franz é um suicida entusiasta". No entanto, o meu editor, perante as duas hipóteses, deu-me a entender que esta última frase poderia ser uma adaptação involuntária do título "O suicida entusiasta" de Dries Van Coillie e achou mais verosímil a primeira frase. Confesso que me confundiu esta explicação, porque o título da edição inglesa - "I Was Brainwashed in Peking" - é muito menos literário que o original holandês - "De Enthousiaste Zelfmoord" - e menos susceptível de ser vítima de uma adaptação involuntária, mas dado o estado relativamente degradado das minhas relações com o meu editor achei melhor não o contrariar.
O Dr. Weissmuller pôde ver, a partir do seu confortável gabinete, mas com o desconforto habitual que o chefe dos chefes de vendas lhe provocava, a mudança de cor que a frase produziu no rosto ansioso de Franz. Sabia que devia agir rapidamente e deslocou-se com o seu passo enérgico para o vestiário onde trocou o casaco por uma bata branca desenhada há muitos anos por Hugo Boss. Em seguida, munido do seu telefone portátil interno, subiu no elevador de serviço ao trigésimo segundo andar. Sentou-se na sala de acesso ao hangar de helicópteros e dispôs-se a esperar, dando graças a Deus por ter no bolso da bata um espesso livro de sudokus.
Enquanto procurava o número certo para cada casa, lembrou-se que nunca chegara a comprar nem a ler "O suicida entusiasta". Parecera-lhe sempre um título demasiado expressivo para sobrepor a uma história e, talvez injustamente, acreditara tratar-se de um livro escrito unicamente para aproveitar um título paradoxal. E não era de paradoxos que o Dr. Weissmuller gostava. O sudoku era muito mais claro: cada problema, uma única solução.
(continua)

Torcato Matos

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