sexta-feira, agosto 04, 2006

A dificuldade de ler (33)

Weissmuller era o terceiro filho de um importante quadro do III Reich e tinha prometido a si próprio uma dedicação total à ciência e à salvação física dos homens, para compensar o ainda não explicado desvio do pai em relação aos bons princípios da deontologia médica e da boa prática clínica, que as circunstâncias especiais da guerra - e a guerra tem sempre razões que a razão desconhece - tinham despoletado num homem tradicionalmente afável, amigo dos seus amigos e preocupado com a sobrevivência da espécie naquilo que ela tinha de melhor e portanto dos seus melhores e superiores elementos. Naquela empresa, Weissmuller não queria ser um médico de trabalho rotineiro e por isso tentava ir mais longe na apreciação do estado de saúde e de espírito dos seus impacientes colegas. Tinha adquirido prestígio e conseguido eliminar o sotaque germânico, dois esforços que, em casa do inimigo, consumiram os primeiros anos de exercício e o tornaram uma inesperada peça chave da intrincada estrutura da empresa. Pode dizer-se que há anos que nenhum parecer transpunha um nível que fosse da cadeia hierárquica sem uma, ainda que ligeira e não oficial, pincelada opinativa do Dr. Weissmuller. Não é necessário dizer mas digo-o na mesma, o intenso orgulho que Weissmuller transpirava ao sentir como reconheciam a sua evidente superioridade moral e mental. A questão da superioridade física resolvia-se através da sua insuperável perícia tanto no golfe como no ténis, em que há vários anos recebia o cobiçado prémio da associação de empresas do sector, e na postura charmosa com que enfeitiçava o sector feminino desde a quarta sub-cave onde laborava o pessoal menor até ao trigésimo terceiro andar de onde a administração pensava o futuro com uma soberba vista - quando o nevoeiro deixava - sobre a distância paciente do rio.
O campo complexo das investigações do Dr. Weissmuller não se enquadrava na tradicional terapêutica de dar umas pastilhas para aliviar as dores e as irritações. Cada caso é um caso, diria ele para os seus colegas que tentavam entrar em generalizações apressadas - podendo considerar-se uma generalização apressada generalizar que todas as generalizações são apressadas. No caso de Weissmuller - ele prescindia amistosamente do título considerando que era tão evidente a sua qualidade de doutor que deixava a designação para uso naqueles em que pudesse persistir a dúvida - não só cada caso era um caso como se distinguia de todos os outros, não num pormenor mas em inúmeras e inconciliáveis diferenças. Num sentido muito próprio ele sabia que tinha a solução para quase todos os casos que lhe passavam pelas mãos. Mas - e este mas é sumamente importante - não considerava que fosse da competência do médico proporcionar felicidade ao paciente. Tinha sim a obrigação concorrente de manter a vida e reduzir o sofrimento até aos limites do suportável. Tal perspectiva poderia facilmente colidir com inúmeras outras - e em certa medida com as de alguns dos trabalhadores da empresa - mas era bem vista pela hierarquia que tinha há muito detectado em gráficos de elevada definição, uma correlação inversa entre a felicidade e a produtividade.
(continua)
Torcato Matos

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