sexta-feira, agosto 11, 2006

A dificuldade de ler (39)

- Devo então pedir a minha demissão. É isso que você quer, Weissmuller, que eu abandone a empresa.
- Isso é uma maneira trágica de dizer a coisa. O Franz já abandonou a empresa há muito tempo. Não sei precisar quando, mas há um momento em que deixou trabalhar para o grupo e passou a trabalhar para outra entidade que me abstenho de referir.
- Que está a insinuar, Weissmuller? Dedico-me cem por cento a esta empresa.
- Admito que esse seja o seu sentir. Daí eu poder dizer que não sabe tudo a seu respeito. É suposto que um organismo funcione por cooperação das suas partes. E cada parte funciona tendo em vista o bem global do organismo. A parte não se dedica ao organismo: integra-o, é o próprio organismo. Houve um momento em que o Franz passou a olhar para a empresa como se estivesse do lado de fora. Lamento dizê-lo assim, mas foi isso que aconteceu.
- Isso é um disparate.
- Só quando se está do lado de fora é que se começa a ter um olhar crítico sobre o organismo; começa-se a contestar, a sentir que há coisas que não estão a ser bem feitas, a falar de ética e moral e respeito e não sei mais o quê. Isso corrói, Franz. Estraga o bem estar do sistema. Tomamos o pulso, vemos a temperatura e sentimos o organismo em desarmonia. Há um 'corpo estranho' a contaminá-lo.
- Eu sou esse 'corpo estranho'?!
- Não é nada de pessoal, Franz. São medidas instrumentais, medidas médicas. O organismo deve ser protegido das infiltrações perigosas. A afinação, a produtividade, a imagem exterior, a alegria interior, tudo depende de não haver areia na engrenagem. É uma terapêutica. A radiografia indica um corpo estranho. Temos de começar por aí.
- Acha que eu ponho a empresa em perigo?! Que é que eu fiz de tão grave? Discordo dos novatos, dos métodos agressivos. Discordo de caluniar a concorrência. Os nossos produtos são bons, valem por si. Para quê denegrir os outros. Mesmo que fosse verdade...

- Aí está, Franz. Você já não está cá. Saltou pela janela, como ia saltar ali fora trinta e três andares. Espalhar-se aos bocadinhos lá em baixo e lixar a empresa com publicidade negativa. Você incorporou o exterior do grupo e agora já nem consegue raciocinar de acordo com o que é importante. E repare que é tão grave que nem tira nenhum benefício dessa situação. Rebenta consigo e rebenta com o grupo. Imagine amanhã nos jornais: quadro superior da Coriander Systems Enterprise atira-se pela janela e esborracha-se na via pública, perturbado o trânsito e a cotação em bolsa.
(continua)

Torcato Matos

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